domingo, 20 de novembro de 2011

Dois textos sobre Amadeo Modigliani

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Nietzsche e Modigliani - Breves comentários acerca de um diálogo possível
Há sempre momentos de ironia ao longo da história. As ressonâncias estão sempre a tecer novos fluxos e, muitas vezes, a produzir diálogos anacrônicos, descontínuos. Assim, essas potências (in) atuais, de natureza explicitamente intempestiva, agem e propiciam - à melhor maneira espinosana - bons encontros.
                Nietzsche e Modigliani estão cronologicamente afastados, estão situados em períodos diferentes; nunca houve, entre eles, qualquer relação direta. Tal afastamento, no entanto, não impossibilita o diálogo e a profunda empatia que há entre as obras desses amigos que se (dês)conhecem e que, por força de uma pathos trágico,  mantêm, de forma visceral, uma singular relação com os domínios mais intensos da vida. A questão mais relevante desse diálogo encontra-se no procedimento que ambos utilizam, cada qual à sua maneira, para se manterem em contínua relação com o “fora”. A pintura de Modigliani parece desdobra-se literalmente em um movimento que, por certo, dar-se-ia em termos lacônicos ou, melhor dizendo, sua obra seria uma espécie de pintura-aforismo.  Estaria ela dotada de uma espontânea liberdade que a faz interpretativa e, a partir disso, poder-se-ia, também, denominá-la como sendo umapintura-fisiológica. Não seria Modigliani um fisiólogo comum, mas sim um fisiólogo-artista com todos os cuidados e capacidades afetivas e amorais que o tornam um singular interprete do mundo. Essa relação com o mundo - com a potência implícita nos vividos – faz de Modigliani, e de sua obra, um exemplo de imediata relação com o “fora”. Não há, pois, uma latente interioridade, ou mesmo uma relação mediada a custos com o mundo. Os traços estão longe das representações, são, antes, forças que se produzem numa exterioridade. A pintura salta da tela, deseja o que é vida. (Continue lendo o texto aqui.)

Modigliani: a potência e o delírio de um artista da vida
Amadeo Modigliani, bem como outros grandes pintores de sua época, é um artista de forças. Sua pintura não é fundada, em primeiro momento, nos aspectos técnicos e na primazia de elementos cromáticos ou em quaisquer que sejam os métodos para composição técnica de uma obra de grandes exigências. Modigliani é - antes mesmo do estilo que imprimi em suas telas - um artista por excelência, cuja vida e obra - e os acontecimentos que a potencializam – estão simbioticamente atreladas.

A pobreza e a não aceitação de sua obra foram fatos recorrentes durante quase toda a vida de Modigliani; fatos que talvez tenham sido, sob aspectos pontuais, fundamentais para o caráter de sua pintura. Modigliani possuía algo comum apenas aos grandes homens, uma radicalidade que se dava em um nível perigoso, sobretudo, em relação a sua maneira de ser. Para preservar-se enquanto artista recusou, durante muito tempo, as possibilidades do mercado evitando, com isso, a corrupção e má apropriação de seu trabalho por parte do precário senso estético dos consumidores de arte – estes, em qualquer época, sempre dispostos a diminuir a potência das obras. Modigliani não era um homem comum e, por isso, seus traços também não eram. Assim, pela não aceitação da vulgaridade, se fez artista. (Continue lendo o texto aqui.)

terça-feira, 3 de maio de 2011

Eduardo Coutinho: o documentário como a arte do encontro (Parte 1)

O documentário é um suporte áudio-visual que possibilita, através de seus diversos modos, maneiras muito próprias de argumentação e criação. Há uma necessidade de interação entre tema e modo que determina, aos menos em certos casos, os limites documentais que podem, ali, ser trabalhados.

 Quatro modos documentais, em especial, parecem fundamentais para uma analise crítica e precisa desse gênero de produção áudio-visual. Vale, aqui, o destaque para os modos expositivo, observativo, participativo e reflexivo. A não inclusão dos modos poéticos e performático decorre, sobretudo, da ausência dos aspectos concretos comuns a outros modos – o que não significa que, em certos casos, haja certa interação entre aspectos da vida concreta cuja apresentação se dê a partir do privilégio de formas poéticas e performáticas. O foco dado aos modos supracitados em destaque se deve ao fato do gênero documentário impulsionar uma radical ruptura estética e política que, fundamentalmente a partir do entrelaçamento dos modos observativo e participativo, passam a colocar o qualquer um em destaque, ou seja, confere visibilidade àquele que, até então, era posto em segundo plano. Esse qualquer um, que agora ganha espaço, se impõe ao mesmo tempo em que torna possível, através do engendramento dos múltiplos que o compõem, a quebra da narrativa representativa. A quebra com a representação, por tanto, se dá no momento da valorização do ordinário e dos fluxos que o compõem, só assim o documentário pode exercer sua potência enquanto linguagem artística. Em outras palavras “o banal torna-se belo como rastro do verdadeiro”.

Dessa maneira, portanto, o documentário cria para si uma estratégica linha de fuga que lhe permite atuar nas bordas da realidade sem deixar com que os outros espaços sejam, também, reconhecidos.



O documentário brasileiro de Eduardo Coutinho

A tradição documentarista no Brasil tem inicio com “Aruanda” (1960), filme de Linduarte Noronha que, por sua brilhante imersão na realidade nordestina e por sua destreza no trato dos fatos da realidade ali expostos, é considerado, ainda, um dos mais influente trabalho do gênero no Brasil. Ora, se “Aruanda” constitui-se como norteador do processo produtivo e estético do documentário brasileiro, anos depois é “Cabra Marcado para Morrer” (1984), de Eduardo Coutinho, que mostra as possibilidades do documentário enquanto linguagem isenta de devaneios e elucubrações desvinculadas do real. Ali já há um singular aspecto que, posteriormente, seria desenvolvida de acordo com as experimentações possíveis a cada filme: a singularidade dos encontros.  A experiência e as conseqüentes experimentações ocorridas no decorrer dos anos propiciaram ao documentário brasileiro características muito próprias. Em contrapartida aos documentários de cunho investigativo - de tendência  jornalística – o documentário brasileiro cria, possibilita a imersão na realidade e vê a profundidade dos temas abordados como dobras da realidade nua. É a exposição feita pelo participante em contraposição a estranheza do mero visitante, ou seja: o olhar de muitos e não de um, o olhar da multiplicidade revoltada contra a unidade passiva, não criadora. É essa a grande qualidade das obras de Eduardo Coutinho. Seus filmes se compõem, descompõem e recompõe-se a cada novo projeto de acordo com as singularidades existentes em cada espaço, pessoa, tema e tudo o mais que se apresente enquanto possibilidade agregadora ao projeto em questão. Os fluxos do ordinário transfiguram-se para dar sobrevida e importância ao comum.

O documentário de Eduardo Coutinho, dentre outras características, propõe um compromisso com o real – segue, por assim dizer, o rastro do verdadeiro - mesmo em trabalhos como Santo Forte, cujo caráter místico não desvincula a abordagem do autor de sua premissa ontológica. Tal premissa, no entanto, não confere ao documentário um limite criativo, aliás, ao contrário do que normalmente se pensa, as possibilidades engendradas a partir de realidades diversas constituem um modo muito peculiar de criação cujo envolvimento com modos singulares dos espaços, acontecimentos e pessoas envolvidas é uma fonte de criação cinematográfica que não se desvirtua da realidade em si. Assim sendo, o documentário parece propor uma re-significação do vídeo; primeiro negando-o como espaço das representações, segundo, e por conseqüência imediata do primeiro aspecto, fincando em sua estrutura o aspecto que somente diz respeito ao real.

A construção da linguagem cinematográfica do documentário, dessa maneira, possibilita uma imersão na realidade, opondo-se às excessivas investidas que o próprio cinema – nas suas mais diversas formas – faz na construção de um espaço meramente representativo.