domingo, 18 de maio de 2008
A consolação da Filosofia - Entrevista com André Comte-Sponville
A consolação da filosofia
Pensador francês se inspira nos gregos antigos e no budismo para orientar a busca da felicidade
Existem imbecis felizes e gênios infelizes, segundo André Comte-Sponville, um dos mais respeitados filósofos e ensaístas da atualidade. Ideal seria escolher uma terceira via: a dos sábios, que não se apóiam na esperança como muleta. Esperar não é saber, diz o pensador. Ele vive em Paris e tem livros traduzidos para mais de 20 idiomas. Sponville recorre a Epicuro, Montaigne e Buda para nos incitar a agir. Em sua opinião, Woody Allen resume, com genialidade, nossa aptidão para a tristeza: "Como eu seria feliz se eu fosse feliz!". Em seu pequeno livro Felicidade, Desesperadamente, o filósofo condena as utopias. Sugere viver na lucidez, na desesperança e no momento presente: "Quando você faz amor, o que mais deseja? O orgasmo ou o ato em si?", pergunta Sponville. "Se for o orgasmo, a masturbação é o meio mais rápido."
ÉPOCA - O senhor afirma que todos os homens sem exceção procuram ser felizes e cita Pascal, em seus Pensamentos (1670): "A busca da felicidade é o motivo de todas as ações de todos os homens, inclusive dos que vão se enforcar". Para a maior parte da humanidade, essa busca não seria vã?
André Comte-Sponville - Tudo depende do que se entende por felicidade. Se você busca uma alegria contínua e soberana, ou mesmo a ausência total de sofrimento e angústia, certamente nunca será feliz. "Toda vida é sofrimento", dizia Buda. E tinha razão. A felicidade, se a entendemos como uma alegria completa, é apenas um sonho, que nos separa do contentamento verdadeiro. Em busca da felicidade absoluta, nós nos proibimos de viver as felicidades relativas e nos tornamos infelizes. Se, ao contrário, você entender como felicidade o fato de não ser infeliz ou simplesmente de poder desfrutar algumas alegrias, a felicidade não é impossível. E você será feliz somente por não ser triste. À exceção, claro, nos momentos mais difíceis da vida.
ÉPOCA - Qual é sua definição de felicidade na vida cotidiana?
Comte-Sponville - Todo lapso de tempo durante o qual a satisfação parece imediatamente possível. Não há como se sentir alegre permanentemente. Isso é impossível. Mas há como sentir que podemos ser felizes por nós mesmos, sem que nada de essencial mude no mundo. A infelicidade se instala quando nossas alegrias dependem totalmente de circunstâncias externas.
ÉPOCA - O senhor é feliz?
Comte-Sponville - Sim. Não tenho grande mérito nisso. Vivo com uma mulher que amo e que me ama, tenho três filhos com saúde, trabalho no que me dá prazer, meus livros são bem-sucedidos. Em resumo, tenho muita sorte. É preciso sempre ter um pouco de sorte para ser feliz. Mas também é preciso amar a vida, mesmo quando ela é difícil e angustiante. Consigo ser um pouco assim, cada vez mais graças à filosofia.
ÉPOCA - O senhor associa a felicidade à sabedoria. Os ingênuos e os ignorantes seriam então condenados a ser infelizes? Há quem diga que saber demais pode nos levar à angústia ou a um sentimento de impotência.
Comte-Sponville - Existem imbecis felizes e gênios infelizes. Mas a sabedoria é algo distinto da genialidade. Tampouco tem a ver com desatino ou tolice. A sabedoria é, sim, um certo tipo de felicidade. Mas nada tem a ver com a felicidade ilusória, conseguida por drogas ou pela ignorância. A sabedoria é a felicidade dentro da verdade. É o máximo de felicidade associado ao máximo de lucidez. Essa é a meta da filosofia. Nesse caminho, há muitas ilusões a perder e algumas verdades desagradáveis a confrontar. É por isso que a filosofia passa inevitavelmente pela angústia, pela dúvida, pela desilusão. Continua sendo apenas um caminho. Porque o destino é uma felicidade autêntica. É isso que chamamos de sabedoria.
ÉPOCA - E a infelicidade, como ela se revela na vida real?
Comte-Sponville - Quando toda alegria parece impossível, quando acordamos pela manhã sem outra perspectiva a não ser a angústia, a tristeza ou o sofrimento...Eu vivi isso. Perdi duas das pessoas que mais amava no mundo: minha única filha na época e, em seguida, minha mãe. No início, só há o horror e as lágrimas. Com o tempo, a paz retorna, em seguida a alegria. E por isso digo, por oposição, que a felicidade também existe. Como é bom deixar de se sentir infeliz!
ÉPOCA - Como a filosofia pode ajudar alguém a viver feliz?
Comte-Sponville - Filosofar é pensar sua vida e viver seu pensamento. Em que medida isso pode nos aproximar da felicidade? Ficando mais perto da verdade, nós nos libertamos de várias ilusões e esperanças tolas. Isso nos ajuda a amar a vida mais do que amar a felicidade, a verdade mais do que a fantasia, o amor mais do que a fé ou a esperança. Os maiores mestres são, a meu ver, Epicuro (de Samos, filósofo grego dos séculos IV e III a.C.), (Michel) Montaigne (filósofo francês do século XVI) e (Baruch) Spinoza (filósofo holandês do século XVII). Quanto a mim, já me expliquei longamente em meu Tratado do Desespero e da Beatitude e, de maneira mais resumida, em Felicidade, Desesperadamente.
ÉPOCA - A religião pode dar ilusão de felicidade? A fé seria um antídoto à tristeza?
Comte-Sponville - Isso depende de quem tem fé. Se você acredita que a felicidade eterna o aguarda após a morte, isso pode ajudar a suportar em vida a infelicidade...Como sou ateu, vejo nisso mais uma armadilha que uma tentação. Não vou esperar morrer para ser feliz. O fato de, para mim, nada existir após a morte é um motivo a mais para viver da melhor maneira possível. É o que chamo de desespero alegre. Existe uma vida antes da morte, e é a única que importa.
ÉPOCA - A "felicidade que nasce da verdade" foi recomendada por Santo Agostinho (filósofo e teólogo que viveu nos séculos IV e V) como o caminho para a beatitude. Para um ateu como o senhor, o conceito de beatitude tem outro significado?
Comte-Sponville - Não. A definição me convém perfeitamente. Mas não é um caminho para a beatitude. É a própria beatitude. Ela é a felicidade dentro da verdade e, portanto, também dentro da eternidade. Toda verdade é eterna. Mas não é uma eternidade após a morte. É a eternidade presente ou o presente eterno. Spinoza, nesse aspecto, é mais esclarecedor que Santo Agostinho.
ÉPOCA - O senhor se tornou ateu aos 18 anos, após uma confessada desilusão com Deus. Disse, na época: "Uma das raras certezas que eu tenho é que Deus jamais me disse algo". Poderia nos contar como se passou sua conversão ao ateísmo?
Comte-Sponville - Foi em 1970. Por que perdi a fé? Sem dúvida por duas razões principais: a política e a filosofia. A paixão política, naquela época, era tudo. Comparando com a política, a religião me despertava bem menos interesse. Deus deixou de me atrair. Em seguida, parei de crer. Simultaneamente, descobri a filosofia, nos meus estudos, e os argumentos em favor do ateísmo me pareciam definitivamente mais fortes que os argumentos pró-religião. Continuo a refletir sobre o tema. Eu me explico melhor em meu livro mais recente, que acaba de ser editado na França: O Espírito do Ateísmo (Introdução a uma Espiritualidade sem Deus).
ÉPOCA - Os céticos não seriam mais suscetíveis à depressão ou ao tédio?
Comte-Sponville - Freud é sem dúvida quem melhor respondeu a essa questão. A depressão ou a melancolia, escreveu ele, "é a perda da capacidade de amar". Não é a fé que falta aos deprimidos, é o amor.
ÉPOCA - O senhor diz que, para o filósofo, uma tristeza autêntica vale mais que uma felicidade mentirosa. Não seria perigoso consagrar o coração à melancolia?
Comte-Sponville - O filósofo prefere a alegria à tristeza, como todo mundo. Mas ele coloca a verdade num patamar mais alto que todo o resto. Isso não quer dizer que seu objetivo seja a infelicidade. É preciso sempre ter coragem para enfrentar a melancolia ou a tristeza quando surgem. É o único caminho.
ÉPOCA - Seus livros nos incitam à ação, a uma busca engajada. A felicidade seria revolucionária?
Comte-Sponville - Não podemos confundir sabedoria e política. Existem sábios de esquerda e de direita. O que eles têm em comum é desejar o que depende deles próprios, em vez de desejar o que depende dos outros. A sabedoria está muito mais do lado da vontade que da esperança, mais próxima da ação que da fé. O sábio é um homem de ação. É o oposto de um sonhador ou de um utópico, o inverso de um espírito submisso ou passivo. s
ÉPOCA - Hoje, é mais difícil encontrar a felicidade que no tempo dos gregos antigos?
Comte-Sponville - Não. Hoje é mais fácil. Pelo menos nos países desenvolvidos, para quem não sofre com miséria, violência e doença. É difícil ser feliz quando se tem fome ou se é escravo ou oprimido. Era o que acontecia nos tempos de Epicuro com a maior parte das pessoas. Devemos parar de idealizar o passado e de execrar o presente. A humanidade, nos últimos 24 séculos, fez progressos consideráveis. Cabe a nós contribuir para que continue assim. Dito isso, não acho positivo que o ser humano se torne um escravo da sociedade de consumo, associando seu grau de felicidade ao valor de seus bens e propriedades.
ÉPOCA - Por que o senhor usa "o desespero" e "a falta de esperança" como sinônimos? Não haveria mais alegria na esperança que no desespero?
Comte-Sponville - Tomo a palavra "desespero" em seu sentido literal: a perda da esperança, que é dolorosa, ou a ausência da esperança, que pode se tornar o núcleo propulsor da felicidade. Nesse sentido, o desespero não é infelicidade, muito ao contrário. Enquanto se espera a felicidade, não se é feliz. Quando somos felizes, não há mais nada a esperar. O que chamei de "desespero feliz" se aproxima do que (o filósofo alemão Friedrich) Nietzsche [1844-1900] considerava "um saber feliz": é alegrar-se com o que é, e não esperar o que não é. Conhecer, mais que crer. Amar e agir, mais que esperar e temer. É a sabedoria dos estóicos e de Spinoza, mas também de Buda, no Oriente.
ÉPOCA - Viver o presente ou viver melhor o presente seria, segundo o senhor, a atitude mais positiva em direção à felicidade. Qual a relação entre o budismo e sua filosofia de vida?
Comte-Sponville - Não sou budista e não acredito na reencarnação. Mas Buda me parece um dos grandes mestres espirituais da humanidade: o mestre da desilusão e da liberdade.
ÉPOCA - Devemos deixar de lado o desejo para viver melhor o presente?
Comte-Sponville - Não, de jeito nenhum! Recusar o desejo é morrer. Deve-se, isso sim, desejar o presente com todas as forças. Quando você faz amor, o que deseja: o orgasmo que está por vir, ou o ato de fazer amor, aqui e agora? Se é orgasmo o que você deseja, a masturbação é o meio mais rápido. Mas, quando se faz amor, o bom é fazer, aqui e agora, e não desejar nada além do tempo presente que nos absorve por completo.
ÉPOCA - A esperança nos impede de ser felizes? Por quê?
Comte-Sponville - Porque só esperamos o que não temos. E porque não existe esperança sem crença, como dizia Spinoza. Ser feliz é desejar o que temos, ou o que é. Esperar é ter medo. Ser feliz é ser sereno.
ÉPOCA - Qual é o papel do amor na busca da felicidade?
Comte-Sponville - Crucial. O conteúdo da felicidade é a alegria. Não há alegria maior que amar. Amar é contentar-se com o que existe. A única felicidade está dentro da verdade.
ÉPOCA - A consciência da morte como fim de tudo, sem uma viagem futura ao paraíso ou ao inferno, não torna os homens mais ansiosos em ser felizes?
Comte-Sponville - Mais ansiosos não, porém mais impacientes. E isso é bom. A vida é curta. Não há tempo a perder!
ÉPOCA - O senhor diz que a felicidade não é um ânimo absoluto, mas um movimento, um equilíbrio instável e frágil que se deve cultivar incessantemente. Como podemos preservar a felicidade?
Comte-Sponville - Renunciando a sua perenidade, aceitando sua fragilidade. Admitindo que a felicidade é fugaz. Adaptando seus desejos às adversidades da existência, amando a vida e o amor.
ÉPOCA - "Quando se aprende a viver já é tarde demais", uma citação do poeta Louis Aragon (1897-1982) em seu livro. Só se é feliz na maturidade?
Comte-Sponville - Não há idade para a felicidade nem para a tristeza.
ÉPOCA - O escritor André Gide (Nobel de Literatura em 1947) dizia querer morrer "completamente desesperado". Como o senhor gostaria de morrer?
Comte-Sponville - Bem velho, rapidamente, de repente, como se não houvesse nenhuma causa aparente.
ÉPOCA - O senhor tem algo a dizer a quem quer desesperadamente ser feliz em 2007?
Comte-Sponville - Preocupe-se menos com a própria felicidade e um pouco mais com a dos outros. Espere um pouco menos. Ame e aja um pouco mais.
Fonte:http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EDG76063-6014-450-1,00-A+CONSOLACAO+DA+FILOSOFIA.html
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