- O senhor poderia explicar como é possível aproximar o nascimento do trágico de uma história arqueológica baseada em Foucault? Quais seriam os pontos de convergência?
Roberto Machado - Você deve estar referindo-se a meu último livro que acaba de sair pela Jorge Zahar, intitulado O nascimento do trágico: de Schiller a Nietzsche. Efetivamente, concebi esse estudo sobre o trágico como uma arqueologia, quer dizer, como uma análise histórico-filosófica sobre o conceito de trágico, mais ou menos como Foucault havia feito com os conceitos de loucura, de doença, de ciências do homem... Essa proximidade se encontra em eu ter procurado fazer uma análise que privilegiasse o conceito, o sentido conceitual das palavras, atento não só ao momento de seu nascimento, de seu aparecimento, como também a suas transformações no tempo. Assim, penso que as exigências metodológicas que detectei na arqueologia de Foucault — em um livro há muito esgotado e que está sendo republicado, também pela Zahar, com o título Foucault, a ciência e o saber —, as exigências de a análise ser conceitual, descontínua e normativa estão presentes nesse meu novo livro. Mas Foucault também está presente nesse livro sobre o trágico na minha decisão de fazer um estudo mais temático do que monográfico. Estou querendo dizer que, embora quando se pensa em trágico se pense em geral em Nietzsche, procurei mostrar que, além de não ser o único a ter pensado o trágico na época moderna, Nietzsche se insere perfeitamente em um projeto que o antecede, na Alemanha, desde o final do século XVIII, e que antes não existia: o projeto de interpretar a tragédia como um documento filosófico que apresenta uma visão trágica do mundo. E, neste sentido, minha admiração pelos trabalhos de Foucault foi em parte responsável pelo desejo que tive de investigar a constituição histórica do pensamento sobre o trágico desde o momento em que ele surge com a modernidade até Nietzsche, filósofo que talvez represente o ápice da trajetória de todo esse movimento e, ao mesmo tempo, a crítica mais radical do projeto moderno.
- É possível compararmos o nascimento do logos socrático (apontado por Nietzsche como o advento da morte da tragédia), ao nascimento da psiquiatria e da clínica e o silenciamento da dissonância, da alteridade, por uma pretensa razão universalizante, a do discurso médico-científico?
Roberto Machado - Foucault foi muito marcado por Nietzsche. Essa crítica da razão que você salienta é, por exemplo, bem evidente em seu primeiro estudo, História da loucura, livro escrito "sob o sol da grande pesquisa nietzschiana", como diz o seu prefácio. Pois, se Foucault nega que a medicalização ou psicologização da loucura seja o resultado de um progresso que teria levado à descoberta de sua essência, penso que ele pôde fazer isso porque partiu do que, inspirado em Nietzsche, chamou "experiência trágica da loucura", considerando essa experiência como sendo capaz de avaliar as teorias e as práticas históricas sobre a loucura. Quer dizer, para Foucault a loucura, além de figura histórica, é também e fundamentalmente uma experiência originária, essencial, que a razão, ao invés de descobrir, encobriu, mascarou, dominou, embora não a tenha destruído totalmente, por ela ter-se mostrado perigosa. Essa tese, a meu ver, aproxima Foucault da filosofia de Nietzsche, sobretudo do modo como é formulada em O nascimento da tragédia. Dito em poucas palavras, o objetivo final do primeiro livro de Nietzsche é exatamente denunciar a modernidade como civilização socrática, racional, por seu espírito científico ilimitado, e saudar o renascimento de uma experiência trágica do mundo em algumas das realizações filosóficas e artísticas da própria modernidade que retomam a experiência trágica existente na tragédia grega, mas foi reprimida, sufocada, pelo "socratismo estético", que subordinara a criação artística à compreensão teórica, racional. Ora, penso que, assim como o primeiro livro de Nietzsche é a denúncia da racionalização, e portanto da morte, da tragédia a partir da experiência trágica presente nos poetas gregos pré-socráticos, a primeira pesquisa arqueológica de Foucault é a interpretação da história da racionalização da loucura, a partir de seu confronto com uma experiência trágica, que denuncia como encobrimento esse processo histórico que, em sua etapa moderna, define a loucura como doença mental.
- Quais seriam as principais influências de Nietzsche sobre a obra de Foucault? O método genealógico foucaultiano inspira-se no nietzschiano?
Roberto Machado - Nietzsche foi muito importante para Foucault, como ele lembrou algumas vezes em suas entrevistas. Penso, no entanto, que essa presença de Nietzsche é muito mais acentuada no período arqueológico do que no período genealógico. Evidentemente, o nome genealogia vem de Nietzsche. Em Vigiar e punir, e mesmo antes, nas conferências que fez na PUC-Rio, A verdade e as formas jurídicas, Foucault justifica essa denominação com base em Nietzsche. Entretanto, quando examinamos o que ele próprio fez com o nome de genealogia, vemos que foi antes de tudo analisar o saber a partir do poder, ou melhor, explicar o aparecimento das ciências do homem na modernidade, considerando-as como elementos de um dispositivo político, como uma peça de relações de poder, o que não é muito bem o que Nietzsche fez. Enquanto suas análises arqueológicas dos saberes modernos, considerados como saberes "antropológicos", foram profundamente inspiradas na crítica nietzschiana do niilismo da modernidade ou na idéia de que a “morte de Deus” de que falava Nietzsche para caracterizar a relatividade dos valores modernos devem ser radicalizadas com uma crítica do humanismo burguês que procurou ocupar o lugar dos valores antes fundados no absoluto. Assim, parece-me que, se foram sobretudo os aspectos metodológicos do pensamento de Nietzsche que interessaram Foucault na década de 1970, a filosofia de Nietzsche, sobretudo sua crítica do niilismo ou do humanismo da modernidade, influenciou muito mais profundamente a temática filosófica do Foucault arqueólogo, o Foucault dos anos 1960. Além disso, quando Foucault estuda a literatura nessa época, relacionando-a à loucura, à morte e ao ser da linguagem, nota-se que esse privilégio que concedeu a Nietzsche em sua análise crítica das ciências do homem reaparece com a importância que deu aos literatos que introduziram na França um estilo nietzschiano, não-dialético e não-fenomenológico, de pensamento: Bataille, Klossovski, Blanchot . Assim, Nietzsche é fundamental para se compreender não só a crítica que Foucault fez aos saberes sobre o homem na modernidade, ao que ele chamou, parodiando Kant, de "sono antropológico", como também sua valorização da literatura como contestação do humanismo das ciências do homem e das filosofias modernas.
- O que seria a danação da norma? Como ela pode explicar a medicina social e a constituição da psiquiatria no Brasil?
Roberto Machado - Os livros de Foucault que mais estudei foram os arqueológicos: História da loucura, Nascimento da clínica, As palavras e as coisas. Mas fui marcado profundamente pelo Foucault “genealogista do poder”, com seus cursos e seminários no Collège de France. Logo que o conheci, ele deu um curso sobre o poder psiquiátrico, que era uma retomada, de um modo diferente, da História da Loucura, e fez também um seminário com filósofos, historiadores, sociólogos sobre a perícia médico-legal, que era uma continuação da pesquisa sobre Pierre Rivière, que em seguida virou livro. Foi, sem dúvida, inspirado nas idéias de Foucault na década de 1970 que escrevi, em equipe, um livro chamado Danação da Norma, que procurava relacionar as teorias e as práticas da medicina social e da psiquiatria, desde o seu nascimento no século XIX, com a questão do poder no Brasil. O objetivo dessa pesquisa foi situar a medicina brasileira do século XIX no âmbito das transformações econômicas e políticas que modificarão o Rio de Janeiro depois de 1808 e integrarão ainda mais o Brasil na nova ordem capitalista internacional. Notamos que, nesse contexto, a medicina tem um objetivo claro: combater a desordem social, o perigo decorrente da não-planificação da distribuição e do funcionamento da cidade. Isto é, a partir de então, a medicina começa a se interessar por tudo o que diz respeito ao social, torna-se peça integrante da nova estratégia política de controle dos indivíduos e da população. A nova racionalidade dessa medicina vai pouco a pouco - não sem lutas e obstáculos - impregnar o aparelho de Estado e se interessar por instituições como a escola, o quartel, a prisão, o bordel, a fábrica, o hospital, o hospício...Por exemplo, sua política em relação ao hospital é clara: dominar o perigo que grassa no seu interior. E para isso não basta expulsar o hospital do centro da cidade; é necessário transformar o seu espaço e funcionamento, destruindo a falta de higiene, o aglomerado humano, a promiscuidade, o vício, o ócio que estão inscritos em seu próprio corpo, para capacitá-lo a realizar a cura. O hospital é um operador terapêutico, uma "maquina de curar".Procuramos nesse livro analisar sobretudo um outro exemplo, pois essa mesma política leva, em 1841, à criação, no Rio de Janeiro - no local onde hoje funciona um dos campus da Universidade Federal -, do primeiro hospital psiquiátrico brasileiro. Resultado de uma crítica higiênica e disciplinar às instituições de reclusão, o Hospício de Pedro II significou a possibilidade de inserir, como doente mental, uma população que se começa a perceber como desviante nos objetivos da medicina social nascente. Como? Realizando os seguintes objetivos: isolar o louco da sociedade; organizar o espaço interno da instituição, possibilitando uma distribuição regular e ordenada dos doentes; vigiá-los em todos os momentos e em todos os lugares, por meio de uma "pirâmide de olhares" composta por médicos, enfermeiros, serventes...; distribuir seu tempo, submetendo-os à realidade do trabalho como principal norma terapêutica. Assim, por sua estrutura e funcionamento, o hospital psiquiátrico deve ser um operador de transformação dos indivíduos: deve agir sobre os que abriga, atingir seu corpo, modificar o comportamento. Em suma, é uma nova máquina de poder, resultado de uma luta médica e política que impõe, cada vez com mais peso, a presença normalizadora da medicina como uma das características essenciais da sociedade capitalista. Também procuramos mostrar que o hospital psiquiátrico não está isento de críticas, e até mesmo que elas o acompanham desde a sua origem: críticas à sua organização arquitetônica, à subordinação do médico ao pessoal religioso, à ignorância ou maldade dos enfermeiros, ao processo de internação, à falta de uma lei nacional de alienados e de um serviço de assistência organizado pelo Estado. Pareceu-nos, inclusive, que essas críticas são importantíssimas para fazer pensar não só no fracasso real da psiquiatria como instância terapêutica, mas principalmente na exigência de medicalização cada vez maior do espaço social que ela representa.Assim, embora sendo uma pesquisa histórica, situada no século XIX, Danação da norma, nisso também inspirado no papel político que Foucault desempenhou, procurava chamar atenção para dois pontos: por um lado, se a medicina mental apresenta a cura como sua aquisição científica, até hoje nunca deixou de reconhecer o seu lado negro: só se entra no hospício para não sair ou, na melhor das hipóteses, para logo depois voltar. Por outro lado, essa reconhecida incapacidade terapêutica, longe de pôr em questão a própria psiquiatria, serve de apoio a uma exigência de maior medicalização da sociedade. Faz a psiquiatria refinar seus conceitos para atingir novas faixas da população - numa evolução que vai do doente mental ao anormal e do anormal ao próprio normal -, tornando a sociedade uma espécie de asilo sem fronteiras, um asilo ilimitado. Por tudo o que disse, você pode ver como Foucault foi e continua sendo importante para o que fiz e continuo fazendo no campo da filosofia.
Roberto Machado
ROBERTO MACHADO é professor titular do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS/UFRJ) e autor de diversos livros, entre eles: Foucault, a filosofia e a literatura; Foucault, a ciência e o saber; Zaratustra, tragédia nietzschiana; e Nietzsche e a polêmica sobre "O nascimento da tragédia" (organização e introdução), todos publicados por Jorge Zahar Editor. Para essa editora, dirige ainda a coleção Estéticas.
Roberto Machado - Você deve estar referindo-se a meu último livro que acaba de sair pela Jorge Zahar, intitulado O nascimento do trágico: de Schiller a Nietzsche. Efetivamente, concebi esse estudo sobre o trágico como uma arqueologia, quer dizer, como uma análise histórico-filosófica sobre o conceito de trágico, mais ou menos como Foucault havia feito com os conceitos de loucura, de doença, de ciências do homem... Essa proximidade se encontra em eu ter procurado fazer uma análise que privilegiasse o conceito, o sentido conceitual das palavras, atento não só ao momento de seu nascimento, de seu aparecimento, como também a suas transformações no tempo. Assim, penso que as exigências metodológicas que detectei na arqueologia de Foucault — em um livro há muito esgotado e que está sendo republicado, também pela Zahar, com o título Foucault, a ciência e o saber —, as exigências de a análise ser conceitual, descontínua e normativa estão presentes nesse meu novo livro. Mas Foucault também está presente nesse livro sobre o trágico na minha decisão de fazer um estudo mais temático do que monográfico. Estou querendo dizer que, embora quando se pensa em trágico se pense em geral em Nietzsche, procurei mostrar que, além de não ser o único a ter pensado o trágico na época moderna, Nietzsche se insere perfeitamente em um projeto que o antecede, na Alemanha, desde o final do século XVIII, e que antes não existia: o projeto de interpretar a tragédia como um documento filosófico que apresenta uma visão trágica do mundo. E, neste sentido, minha admiração pelos trabalhos de Foucault foi em parte responsável pelo desejo que tive de investigar a constituição histórica do pensamento sobre o trágico desde o momento em que ele surge com a modernidade até Nietzsche, filósofo que talvez represente o ápice da trajetória de todo esse movimento e, ao mesmo tempo, a crítica mais radical do projeto moderno.
- É possível compararmos o nascimento do logos socrático (apontado por Nietzsche como o advento da morte da tragédia), ao nascimento da psiquiatria e da clínica e o silenciamento da dissonância, da alteridade, por uma pretensa razão universalizante, a do discurso médico-científico?
Roberto Machado - Foucault foi muito marcado por Nietzsche. Essa crítica da razão que você salienta é, por exemplo, bem evidente em seu primeiro estudo, História da loucura, livro escrito "sob o sol da grande pesquisa nietzschiana", como diz o seu prefácio. Pois, se Foucault nega que a medicalização ou psicologização da loucura seja o resultado de um progresso que teria levado à descoberta de sua essência, penso que ele pôde fazer isso porque partiu do que, inspirado em Nietzsche, chamou "experiência trágica da loucura", considerando essa experiência como sendo capaz de avaliar as teorias e as práticas históricas sobre a loucura. Quer dizer, para Foucault a loucura, além de figura histórica, é também e fundamentalmente uma experiência originária, essencial, que a razão, ao invés de descobrir, encobriu, mascarou, dominou, embora não a tenha destruído totalmente, por ela ter-se mostrado perigosa. Essa tese, a meu ver, aproxima Foucault da filosofia de Nietzsche, sobretudo do modo como é formulada em O nascimento da tragédia. Dito em poucas palavras, o objetivo final do primeiro livro de Nietzsche é exatamente denunciar a modernidade como civilização socrática, racional, por seu espírito científico ilimitado, e saudar o renascimento de uma experiência trágica do mundo em algumas das realizações filosóficas e artísticas da própria modernidade que retomam a experiência trágica existente na tragédia grega, mas foi reprimida, sufocada, pelo "socratismo estético", que subordinara a criação artística à compreensão teórica, racional. Ora, penso que, assim como o primeiro livro de Nietzsche é a denúncia da racionalização, e portanto da morte, da tragédia a partir da experiência trágica presente nos poetas gregos pré-socráticos, a primeira pesquisa arqueológica de Foucault é a interpretação da história da racionalização da loucura, a partir de seu confronto com uma experiência trágica, que denuncia como encobrimento esse processo histórico que, em sua etapa moderna, define a loucura como doença mental.
- Quais seriam as principais influências de Nietzsche sobre a obra de Foucault? O método genealógico foucaultiano inspira-se no nietzschiano?
Roberto Machado - Nietzsche foi muito importante para Foucault, como ele lembrou algumas vezes em suas entrevistas. Penso, no entanto, que essa presença de Nietzsche é muito mais acentuada no período arqueológico do que no período genealógico. Evidentemente, o nome genealogia vem de Nietzsche. Em Vigiar e punir, e mesmo antes, nas conferências que fez na PUC-Rio, A verdade e as formas jurídicas, Foucault justifica essa denominação com base em Nietzsche. Entretanto, quando examinamos o que ele próprio fez com o nome de genealogia, vemos que foi antes de tudo analisar o saber a partir do poder, ou melhor, explicar o aparecimento das ciências do homem na modernidade, considerando-as como elementos de um dispositivo político, como uma peça de relações de poder, o que não é muito bem o que Nietzsche fez. Enquanto suas análises arqueológicas dos saberes modernos, considerados como saberes "antropológicos", foram profundamente inspiradas na crítica nietzschiana do niilismo da modernidade ou na idéia de que a “morte de Deus” de que falava Nietzsche para caracterizar a relatividade dos valores modernos devem ser radicalizadas com uma crítica do humanismo burguês que procurou ocupar o lugar dos valores antes fundados no absoluto. Assim, parece-me que, se foram sobretudo os aspectos metodológicos do pensamento de Nietzsche que interessaram Foucault na década de 1970, a filosofia de Nietzsche, sobretudo sua crítica do niilismo ou do humanismo da modernidade, influenciou muito mais profundamente a temática filosófica do Foucault arqueólogo, o Foucault dos anos 1960. Além disso, quando Foucault estuda a literatura nessa época, relacionando-a à loucura, à morte e ao ser da linguagem, nota-se que esse privilégio que concedeu a Nietzsche em sua análise crítica das ciências do homem reaparece com a importância que deu aos literatos que introduziram na França um estilo nietzschiano, não-dialético e não-fenomenológico, de pensamento: Bataille, Klossovski, Blanchot . Assim, Nietzsche é fundamental para se compreender não só a crítica que Foucault fez aos saberes sobre o homem na modernidade, ao que ele chamou, parodiando Kant, de "sono antropológico", como também sua valorização da literatura como contestação do humanismo das ciências do homem e das filosofias modernas.
- O que seria a danação da norma? Como ela pode explicar a medicina social e a constituição da psiquiatria no Brasil?
Roberto Machado - Os livros de Foucault que mais estudei foram os arqueológicos: História da loucura, Nascimento da clínica, As palavras e as coisas. Mas fui marcado profundamente pelo Foucault “genealogista do poder”, com seus cursos e seminários no Collège de France. Logo que o conheci, ele deu um curso sobre o poder psiquiátrico, que era uma retomada, de um modo diferente, da História da Loucura, e fez também um seminário com filósofos, historiadores, sociólogos sobre a perícia médico-legal, que era uma continuação da pesquisa sobre Pierre Rivière, que em seguida virou livro. Foi, sem dúvida, inspirado nas idéias de Foucault na década de 1970 que escrevi, em equipe, um livro chamado Danação da Norma, que procurava relacionar as teorias e as práticas da medicina social e da psiquiatria, desde o seu nascimento no século XIX, com a questão do poder no Brasil. O objetivo dessa pesquisa foi situar a medicina brasileira do século XIX no âmbito das transformações econômicas e políticas que modificarão o Rio de Janeiro depois de 1808 e integrarão ainda mais o Brasil na nova ordem capitalista internacional. Notamos que, nesse contexto, a medicina tem um objetivo claro: combater a desordem social, o perigo decorrente da não-planificação da distribuição e do funcionamento da cidade. Isto é, a partir de então, a medicina começa a se interessar por tudo o que diz respeito ao social, torna-se peça integrante da nova estratégia política de controle dos indivíduos e da população. A nova racionalidade dessa medicina vai pouco a pouco - não sem lutas e obstáculos - impregnar o aparelho de Estado e se interessar por instituições como a escola, o quartel, a prisão, o bordel, a fábrica, o hospital, o hospício...Por exemplo, sua política em relação ao hospital é clara: dominar o perigo que grassa no seu interior. E para isso não basta expulsar o hospital do centro da cidade; é necessário transformar o seu espaço e funcionamento, destruindo a falta de higiene, o aglomerado humano, a promiscuidade, o vício, o ócio que estão inscritos em seu próprio corpo, para capacitá-lo a realizar a cura. O hospital é um operador terapêutico, uma "maquina de curar".Procuramos nesse livro analisar sobretudo um outro exemplo, pois essa mesma política leva, em 1841, à criação, no Rio de Janeiro - no local onde hoje funciona um dos campus da Universidade Federal -, do primeiro hospital psiquiátrico brasileiro. Resultado de uma crítica higiênica e disciplinar às instituições de reclusão, o Hospício de Pedro II significou a possibilidade de inserir, como doente mental, uma população que se começa a perceber como desviante nos objetivos da medicina social nascente. Como? Realizando os seguintes objetivos: isolar o louco da sociedade; organizar o espaço interno da instituição, possibilitando uma distribuição regular e ordenada dos doentes; vigiá-los em todos os momentos e em todos os lugares, por meio de uma "pirâmide de olhares" composta por médicos, enfermeiros, serventes...; distribuir seu tempo, submetendo-os à realidade do trabalho como principal norma terapêutica. Assim, por sua estrutura e funcionamento, o hospital psiquiátrico deve ser um operador de transformação dos indivíduos: deve agir sobre os que abriga, atingir seu corpo, modificar o comportamento. Em suma, é uma nova máquina de poder, resultado de uma luta médica e política que impõe, cada vez com mais peso, a presença normalizadora da medicina como uma das características essenciais da sociedade capitalista. Também procuramos mostrar que o hospital psiquiátrico não está isento de críticas, e até mesmo que elas o acompanham desde a sua origem: críticas à sua organização arquitetônica, à subordinação do médico ao pessoal religioso, à ignorância ou maldade dos enfermeiros, ao processo de internação, à falta de uma lei nacional de alienados e de um serviço de assistência organizado pelo Estado. Pareceu-nos, inclusive, que essas críticas são importantíssimas para fazer pensar não só no fracasso real da psiquiatria como instância terapêutica, mas principalmente na exigência de medicalização cada vez maior do espaço social que ela representa.Assim, embora sendo uma pesquisa histórica, situada no século XIX, Danação da norma, nisso também inspirado no papel político que Foucault desempenhou, procurava chamar atenção para dois pontos: por um lado, se a medicina mental apresenta a cura como sua aquisição científica, até hoje nunca deixou de reconhecer o seu lado negro: só se entra no hospício para não sair ou, na melhor das hipóteses, para logo depois voltar. Por outro lado, essa reconhecida incapacidade terapêutica, longe de pôr em questão a própria psiquiatria, serve de apoio a uma exigência de maior medicalização da sociedade. Faz a psiquiatria refinar seus conceitos para atingir novas faixas da população - numa evolução que vai do doente mental ao anormal e do anormal ao próprio normal -, tornando a sociedade uma espécie de asilo sem fronteiras, um asilo ilimitado. Por tudo o que disse, você pode ver como Foucault foi e continua sendo importante para o que fiz e continuo fazendo no campo da filosofia.
Roberto Machado
ROBERTO MACHADO é professor titular do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS/UFRJ) e autor de diversos livros, entre eles: Foucault, a filosofia e a literatura; Foucault, a ciência e o saber; Zaratustra, tragédia nietzschiana; e Nietzsche e a polêmica sobre "O nascimento da tragédia" (organização e introdução), todos publicados por Jorge Zahar Editor. Para essa editora, dirige ainda a coleção Estéticas.
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