quarta-feira, 29 de abril de 2009

Entrevista com Gilles Deleuze e Félix Guattari


– A definição que vocês dão da filosofia é bastante ofensiva. Vocês não temem que vocês sejam,assim, acusados de quererem manter – ou restaurar – o privilégio que a tradição parecia lhe conceder?

– Pode-se dar muitas definições inofensivas da filosofia: conhecer-se, admirar-se, refletir, conduzirseu pensamento de forma apropriada... Elas são inofensivas porque são vagas: elas não constituem uma ocupação definida. Nós definimos a filosofia pela criação de conceitos. Cabe a nós mostrar que a ciência, por sua vez, não procede por conceitos mas por funções. A filosofia não extrai disso nenhum privilégio: um conceito não tem nenhuma superioridade sobre uma função.

– Eu lhes fiz essa pergunta porque vocês confrontam a filosofia com a arte e a ciência, mas não às ciências humanas. Praticamente não se fala da história, por exemplo, no livro de vocês.

– Ao elaborarem a definição da filosofia como criação de conceitos, vocês atacam particularmente a idéia de que a filosofia seria ou deveria ser “comunicação”. Tem-se a impressão de que os últimos livros de Jürgen Habermas e sua teoria da “ação comunicativa” são um dos alvos principais de vocês.

– Não, não atacamos particularmente Habermas, nem qualquer outra pessoa. Habermas não é o único a querer indexar a filosofia de acordo com a comunicação. Uma espécie de moral da comunicação. A filosofia é, inicialmente, pensada como contemplação, e isso deu como resultado obras esplêndidas, por exemplo com Plotino. Depois como reflexão, com Kant. Mas justamente era preciso, inicialmente, nos dois casos, criar um conceito de contemplação ou de reflexão. Não estamos certos de que a comunicação tenha encontrado, por sua vez, um bom conceito, isto é,um conceito realmente crítico. O “consenso” ou as “regras de uma conversação democrática”, à maneira de Rorty, não bastam para formar um conceito.

– Contra essa idéia de comunicação, da filosofia como “diálogo”, vocês propõem a “imagem do pensamento” que vocês inserem num quadro muito mais geral. É o que vocês chamam de“geofilosofia”. Esse capítulo está no cerne do livro de vocês. É, ao mesmo tempo, uma filosofia política e quase uma filosofia da natureza.

– Há certamente razões para que a filosofia nasça nas cidades gregas e continue nas sociedades capitalistas ocidentais. Mas são razões contingentes, o princípio de razão é um princípio de razão contingente e não necessário. É por isso que essas formações são focos de imanência,apresentando-se como sociedades de
“amigos” (competição, rivalidade) e implicam uma promoção da opinião. Ora, esses três traços fundamentais definem apenas as condições históricas da filosofia; a filosofia como devir está em relação com eles, mas não se reduz a isso, ela é de uma outra natureza. Ela não pára de colocar em questão suas próprias condições. Se essas questões de geofilosofia tem muita importância é porque pensar não se faz nas categorias do sujeito e do objeto, mas em uma relação variável entre o território e a terra.

– Nessa “geofilosofia”, vocês apelam à “filosofia revolucionária” e à necessidade de “revoluções”.É quase uma manifesto político o que vocês propõem. E isso pode parecer paradoxal, no contexto atual.

– A situação atual é muito confusa. Tende-se a confundir a conquista das liberdades com a conversão ao capitalismo. É duvidoso que os prazeres do capitalismo sejam suficientes para liberar os povos. Glorifica-se o fracasso sangrento do socialismo. Mas não parecem considerar como um fracasso o estado do mercado mundial capitalista, com as sangrentas desigualdades que o condicionam, as populações colocadas fora do mercado, etc. Há muito tempo que a “revolução”americana fracassou, assim como a soviética. As situações e tentativas revolucionárias são engendradas pelo próprio capitalismo e, lamento dizê-lo, senhores, não correm o risco de desaparecer. A filosofia continua ligada a um devir revolucionário que não se confunde com a história das revoluções.

– Fiquei impressionado com um ponto do livro de vocês: o filósofo, dizem vocês, não discute. Sua atividade criadora só pode ser isolada. Trata-se de uma grande ruptura com todas as representações tradicionais. Vocês pensam que o filósofo não deve mesmo discutir com seus leitores, com seus amigos?

– Já é difícil compreender o que alguém diz. Discutir é um exercício narcísico, no qual cada um se exibe, por sua vez: muito rapidamente, não se sabe mais sobre o que se fala. O que é difícil é determinar o problema ao qual esta ou aquela proposição responde. Ora, se se compreende o problema formulado por alguém, não se tem nenhuma vontade de discutir com ele: ou se se formula o mesmo problema, ou então se formula um outro e se tem, antes, vontade de avançar nessa direção. Como discutir se não se tem um fundo comum de problemas, e por que discutir quando se o tem? Tem-se sempre as soluções que correspondem aos problemas que se formulam.As discussões representam muita perda de tempo para problemas indeterminados. As conversações são outra coisa. É preciso certamente entrar em conversações. Mas a menor conversação é um exercício esquizofrênico que se passa entre indivíduos que têm um fundo comum, e um grande gosto por elipses e atalhos. A conversação é feita de pausas, de longos silêncios; ela pode dar idéias. Mas a discussão não faz, absolutamente, parte do trabalho filosófico.Terror da fórmula “vamos discutir um pouco”.

– Quais são, na opinião de vocês, os conceitos criados pelos filósofos do século XX?

– Quando Bergson fala da “duração”, ele emprega essa palavra insólita porque ele não quer nós a confundamos com o devir. Ele cria um novo conceito. Da mesma forma, a memória, determinada como coexistência de camadas do passado. Ou o elã vital como conceito da diferenciação.Heidegger criou um novo conceito de Ser, seu duplo componente do velamento e do desvelamento. Um conceito exige, às vezes, uma palavra estranha, com etimologias quase malucas, às vezes, uma palavra corrente, mas da qual se extrai harmonias as mais longínquas.Quando Derrida escreve “différance”, com um a, trata-se evidentemente de propor um novoconceito de diferença. Em A arqueologia do saber, Foucault cria um conceito de enunciado quenão se confunde com o de frase, de proposição, de ato de palavra, etc. A primeira característica própria de um conceito consiste em operar um corte inédito nas coisas.

– E vocês, quais conceitos vocês acham que criaram?

– O ritornelo, por exemplo. Nós criamos o conceito de “ritornelo” em filosofia.


Fonte: www.inteligenciabrasileira.blogspot.com

Nenhum comentário: