sexta-feira, 12 de junho de 2009

Lembranças e reflexões sobre Pierre Clastres: Entrevista com Bento Prado Júnior


Realizada em sua casa em São Carlos (SP), em julho de 2003, por Piero de Camargo Leirner e Luiz Henrique de Toledo,* para a Revista de Antropologia do Departamento de Antropologia Social da USP.

Agradeço à Revista de Antropologia e a meus colegas da UFSCar, que me dão agora a oportunidade de lembrar meu saudoso amigo Pierre Clastres. E certo que sua obra é cada vez mais lida e valorizada, tanto no Brasil como na França. Mas talvez escape ao leitor de hoje algo de essencial em seus escritos — visível apenas entre as névoas das entrelinhas —, mais facilmente acessível para quem com ele conviveu como amigo próximo: aquilo que há de propriamente pessoal e irrepetível no perfil intelectual de Clastres e que seu estilo ascético e rigoroso tende a esconder.

O curioso é que há poucos meses, conversando com Hélène Clastres, convidei-a para uma visita a nossa Universidade, em São Carlos. Ela poderia falar, para nós, de sua própria obra — penso aqui, entre outros escritos, no belo livro A Terra sem Mal — e da de seu marido, tão essencialmente ligadas uma à outra e reciprocamente iluminadoras. A resposta não foi imediatamente positiva, mas permito-me guardar a esperança de recebê-la num futuro próximo para ouvi-la a respeito desse capítulo tão peculiar do "estruturalismo" francês, especialmente nas décadas de 60 e 70 do século passado, cuja força só aparece plenamente nos dias de hoje.

Professor, conte sobre seu encontro com os Clastres.

Na verdade, conheci Pierre antes de Hélène. Foi logo depois da volta de minha primeira viagem à França, em 1963. No segundo semestre desse ano, Fernando Henrique me convidou à sua casa para que eu conhecesse dois antropólogos franceses que passavam pelo Brasil em direção ao Paraguai: Pierre Clastres e Lucien Sebag. Hélène ficara em Paris - ela aguardava, se a data acima está correta, o nascimento de seu filho Jean-Michel. Algum tempo depois (dois anos?), acompanhada de seu filho, foi encontrar-se com Pierre entre os índios do Paraguai, que deram ao menino o belo nome de Baimamá (pequena coisa redonda). Aliás, não é só a mim que falta a memória. Recentemente, para estabelecer alguns dados biográficos do autor para a nova edição de A sociedade contra o Estado,1 a coordenadora telefonou-me perguntando a respeito de datas: estadias no Brasil, cursos na USP etc. Telefonei para a Hélène em busca de ajuda, mas seu auxílio foi muito pequeno. Os tempos passam... De qualquer maneira, a partir da segunda estadia de Pierre no Brasil, ficamos muito próximos. Muitas manias, teóricas e outras nos eram comuns. Freqüentemente, na rua Maria Antonia [no centro de São Paulo], o Pierre me perguntava: — "Que horas são?". E à minha resposta, acrescentava : "Il faut commémorer cela/". Aprendi então algumas versões do ato da libação em argot, como: se jetter quelque chose derrière la cravate ou se picrâter la cervelle.** Em 1969, quando fui cassado pelo AI-5 e tive de retornar à França, acabei alugando um apartamento no limite de Paris, entre Vanves e Issy-les-Moulineaux, bem perto do dos Clastres, com quem mantivemos contínua e perfeitamente fraternal convivência até agosto de 1974. Para mim foi um profundo abalo saber, três anos mais tarde, do acidente que o levou à morte. Naqueles anos chegamos a passar (eu, Lúcia e nossos filhos) três férias juntos: no Laric, num pequeno castelo do século XVI nos Alpes [ver foto p. 2, supra], de propriedade dos pais de Hélène; nas Cévennes, numa casa secundária de Pierre e Hélène; e na Gasconha, em Boussens, na casa do pai de Clastres. É curioso notar que Pierre, fino escritor, era gascão (como d'Artagnan) e só veio a aprender o francês na escola.

Ele lecionou na Universidade de São Paulo quando veio para cá?

Se não me engano, lecionou formalmente na USP em sua segunda estadia, em 1967, mas em maio de 68 já estava empenhado em construir sólidas barricadas nos boulevards de Paris. No entanto, antes de ele dar início a suas atividades docentes, pude ouvi-lo no apartamento do Gérard Lebrun, quando fez uma exposição informal de seu texto "Philosophie de la chefferie indienne".2 Grosso modo, a chefia é um lugar particular e diferencial no sistema de trocas e comunicações (de bens, mulheres e palavras). O chefe recebe mulheres sem compromisso de reciprocidade (embora seja obrigado à generosidade na retribuição de bens materiais) e, sobretudo, é obrigado a emitir um discurso interminável (por assim dizer), sem inter-locução ou qualquer dimensão performativa. Chefia = discurso sem poder. Como se o socius enclausurasse a chefia no mínimo espaço imaginável - uma espécie de "prisão". No avesso do paradoxo "obediência voluntária", o paradoxo inverso: "chefia sem poder". E claro que a exposição me impressionou forte e imediatamente. E acrescento que a expressão Philosophie de Ia... foi sugerida ou imposta por Lévi-Strauss. Talvez porque o texto lhe parecesse ultrapassar a pura etnografia, caminhando já na direção de uma teoria geral da Política e do Estado. Na direção da estranhíssima idéia de que uma sociedade sem Estado não desconhece a essência do Estado; pelo contrário, é capaz de prevenir-se contra sua emergência! No limite, como não há pensamento prélógico, não há paraíso pré-político. Desde a origem, o verme está no fruto.

Curioso, pois justamente nesse texto, em que faz uso de termos do estruturalismo tão em voga naquela época, Clastres talvez dê um passo também para afastar-se dele, não é?

De fato, é importante sublinhar essa deriva ou esse desvio face à ortodoxia. Aliás, em meu Prefácio (ver supra) insisto nesse aspecto e o associo à relação permanente de Clastres com a filosofia, mesmo se à distância. Isto me é visível porque tínhamos mais ou menos a mesma idade e havíamos lido a mesma bibliografia filosófica.

Não há dúvida de que, no fim da década de 50 e início da de 60, a palavra estruturalismo remetia essencialmente à obra de Lévi-Strauss. Não se conhecia ainda essa espécie de ideologia que explodiu na mídia no fim da década de 60, identificando Lévi-Strauss, Lacan, Foucault, Barthes etc, autores de obras tão distantes, em tantos aspectos, umas das outras. Tanto que, em 1968, convidado a fazer uma conferência em Curitiba, comecei minha exposição afirmando dramaticamente: "Não existe isso que se chama de pensamento estruturalista!". Insisti nas diferenças radicais que separavam essas obras e na riqueza que se perdia na mesmice do amálgama ideológico. Mas desde sempre Clastres percorreu um itinerário muito particular, mesmo em relação à ortodoxia lévi-straussiana, porque jamais foi tentado a abandonar o horizonte da filosofia pelo do formalismo algébrico (o império dos "grupos de transformação") que havia aspirado para dentro de si a maioria dos discípulos do autor d'As estruturas elementares do parentesco. Itinerário marcado pela remanência dos interesses filosóficos (como Hélène, Pierre foi aluno de Gilles Deleuze, que ambos pareciam admirar muito) e pelo evidente gauchisme de que Clastres jamais se demarcou. Lembro-me de uma frase curiosa — de sabor kantiano —, em que ele dizia "A revolução é impossível, mas devemos agir como se ela o fosse". Aliás eu sublinho, no Prefácio já referido, o outro aspecto dessa heterodoxia: o fato de que Clastres nunca deixou de ser um leitor da Carta sobre o humanismo de Heidegger. E não é impossível pensar a idéia das relações entre estrutura da linguagem e estrutura da natureza sobre o fundo da idéia da "linguagem como Mansão do Ser"...

O que mais me marcou na obra de Clastres foi o fato de sua idéia central colocar em cheque uma espécie de "evolucionismo" implícito na antropologia política, exemplarmente ilustrada, no século XIX, pela filosofia da história de Engels, que passou a fazer parte do ABC do marxismo ou, pelo menos, do marxismo vulgar.

Trata-se de uma relação com a filosofia seguramente diversa da que encontramos em Lévi-Strauss. Para este, passar para a antropologia era livrar-se de uma carga inútil. Para ele, a filosofia sempre esteve ligada à filosofia praticada na universidade, ao vazio das "dissertações", em que é possível demonstrar tudo ou nada por meio de uma dialética puramente abstrata - no fundo, mera retórica. Para Lévi- Strauss tudo se passa como se a filosofia fosse essencialmente uma ilusão, ou uma forma pobre do pensamento selvagem. É o que se pode, talvez, vislumbrar num parágrafo muito curioso de O Totemismo hoje. Em certo momento desse livro, ele sublinha como alguns textos de Bergson são esclarecedores para a compreensão da mitologia de uma tribo indígena da América do Norte. Esclarecedores, por mostrar uma afinidade profunda com essa mitologia. Bergson, penseur sauvage... Sendo capaz de explicar a mitologia, o antropólogo explica também a metafísica bergsoniana...3

No caso de Clastres, não encontramos nada de semelhante a essa arrogante diminuição da filosofia. Não tinha a pretensão de escrever como filósofo — ou, pelo menos, como filósofo "profissional", se tal coisa existe. Mas sua prática da etnografia acaba por desaguar na reflexão filosófica. É talvez por essa razão que a obra de Pierre, como a de Hélène, estão voltando a ser pontos de referência essenciais, como se fosse necessário transcender, de algum modo, o estilo do "estruturalismo", para manter seu espírito mais vivo e assegurar sua permanência, para além das ondulações superficiais dos maneirismos, da moda intelectual ou da ideologia.

Talvez isso se deva também ao fato de haver um movimento dentro da antropologia brasileira que pretende, a partir da dita "filosofia indígena", fornecer visões alternativas à própria filosofia ocidental...

Aí vocês se referem ao [Eduardo] Viveiros de Castro... Com quem, aliás, pude discutir o assunto numa ANPOCS recente.

Mas, voltando ao Clastres, posso acrescentar algo nessa direção. Numa ocasião, em Pierres (sic, esse é o nome de uma pequena cidade, perto de Chartres, onde morei), Clastres contou-me a história de um discurso de certo "xamã" guarani, que dizia mais ou menos o seguinte: "Tudo é Um, mas isso não é bom, nós não queríamos que assim fosse". Se me lembro bem, segundo Pierre, em guarani o pronome nós assume distintas formas, segundo incluam apenas os homens, ou os homens e os deuses. Diante desse enunciado, minha imaginação metafísica despertou e pensei de imediato num contraponto com Heráclito. O filósofo grego diz, ao contrário, mais ou menos, "tudo é um e nós devemos homologá-lo" ou ainda "é bom que tudo seja um". Trata-se de uma tese que é metafísica (o devir, a multiplicidade é reduzida à unidade) e ético-política (as múltiplas vontades devem submeter-se à vontade de um só). São obviamente textos de vocação essencialmente anti-democrática, que ligam a hierarquia social à ordem racional do Cosmo. Nada mais contrário ao "anarquismo" espontâneo de nossos antepassados Guarani, que aspiravam à Terra sem Mal, isto é, sem lei e sem trabalho.

Ocorreu-nos fazer um texto a quatro mãos sobre essa oposição. Mas o fato é que eu não era nem antropólogo nem helenista e acabei, sabiamente, pulando fora da empresa. Mas Clastres escreveu um texto curto sobre o assunto.4 Mais tarde, uma das melhores historiadoras da filosofia grega, Nicole Loraux5 haveria de retomar a questão, confirmando, com sua autoridade de helenista, minha intuição de amador. De qualquer maneira temos aí uma antecipação da contemporânea oposição entre "filosofia indígena" e filosofia ocidental.

Teria havido uma influência dele sobre a filosofia que se fazia no Brasil naquela época?

Sua influência no Brasil foi notável. Como já disse, fui muito sensível às suas idéias e fiz delas o uso de que fui capaz. Mas sobretudo me é possível, hoje, perceber retrospectivamente como sua influência se alastrou mais largamente. É clara para mim, agora, a forte influência exercida sobre colegas de meu Departamento, em especial Marilena Chauí e Sérgio Cardoso (curiosamente, parece que os antropólogos da USP mantiveram uma discreta distância em relação ao trabalho de Clastres).

Sua influência tinha muito a ver com sua personalidade, seu estilo inquieto, uma espécie de anarquismo não somente pensado mas vivido. Sempre foi muito avesso aos cerimoniais da Universidade, mais chegado a um "boteco" do que a um seminário formal. Estilo que convergia, aliás, com minhas preferências (lembro-me de ele me dizer em 1967 ou no início de 68: "O Fernando Henrique [Cardoso] e o [José Arthur] Giannotti não gostam muito de boteco, não é?". Ao que respondi: "Infelizmente não").

Giannotti critica, em Trabalho e reflexão a metafísica de Clastres.6 No Prefácio {supra) que o senhor escreveu, ao contrário, essa metafísica assume um valor positivo.

Giannotti faz uma crítica muito fraca, confessemos. A despeito da complexidade de sua obra (desde a "ontologia do social" de inspiração feno-menológica até a incorporação das idéias de Wittgenstein, passando por Hegel e Marx) é impossível - apesar da graça que há na alusão aos versos de "A tabacaria", de Fernando Pessoa, sobre a "metafísica do comer chocolate" — não ver aí a resistência do pensamento especulativo (a "lógica" especulativa da posição/reposição) ao trabalho etnográfico no que ele tem de mais concreto e iluminador. Em Clastres não encontramos nenhuma ontologia a priori da produção. Mas, como diria Wittgenstein, nos limites de seu trabalho etnográfico, algo de metafísico deixa-se ver ou mostrar. Mais que uma metafísica positiva, uma metafísica interrogativa.

Trata-se de interrogações essenciais que não poderiam emergir senão da experiência etnográfica, e que são inacessíveis a um armchair philosopher, para usar a expressão de Sir Bertrand Russell, contra os filósofos da "virada lingüística". O Giannotti, que não é etnólogo, só percebe as conseqüências filosóficas do trabalho, sem reportar-se à sólida base de que derivam. Sinceramente prefiro o movimento regressivo que nos leva do fato às suas condições formais ou transcendentais. Pareceme perigoso o caminho inverso, da dedução do empírico ou de seu enquadramento autoritário num esquema prévio desenhado pela imaginação especulativa: por exemplo, algo como a "forma lógica" da práxis na sua mais abstrata generalidade. Quando se trata de pensar sociedades ou a História, então...

É curioso, pois a escola sociológica francesa também se caracteriza pelo caráter coletivo da produção intelectual e Clastres destoa um pouco...

Clastres estava ligado institucionalmente ao Laboratoire d'Anthropolo-gie Sociale do Collège de France, do qual Lévi-Strauss era o diretor. Mas isso não o impediu de, mais tarde, colaborar intensamente com o grupo da revista Libre, liderada pelo Claude Lefort, e que reunia também pessoas como Mareei Gauchet, Miguel Abensour, Cornelius Castoriadis, Krzysztof Pomian e Maurice Luciani.

Clastres compartilhava sua experiência de campo com o senhor?

Em nossas conversas ele sempre relatava suas experiências. Comecemos pelas mais engraçadas. Certa vez, uma índia, tentando seduzi-lo, chegou a pedir auxílio a seu principal marido (tratava-se de uma sociedade poliândrica), que disse a Clastres que não haveria problema, que a boa ordem seria restabelecida com uma punição puramente simbólica. Ele fingiria atingi-lo na cabeça com seu tacape, mas interromperia o gesto antes do choque. Clastres guardou a idéia da punição simbólica, mas recusou os avanços da mulher e a argumentação do zeloso marido. Duas outras histórias, relativas aos informantes indígenas: a do informante incompetente e a do informante malévolo. O primeiro, interrogado a respeito da palavra guarani correspondente a jamais, foi incapaz de responder imediatamente. No dia seguinte, todo alegre, trouxe a resposta; a palavra seria... "ni noticia", e acrescentou: Guarani legítimo! O segundo, a quem Clastres perguntara o nome de uma ave que sobrevoava a paisagem, respondeu prontamente: "tatu". Prelibava, certamente, os mal-entendidos em que seu interlocutor se enredaria com esse uso extravagante da língua indígena!

Outra situação pouco confortável era a das lutas com os Yanomami, gente muito forte. Clastres também era forte e praticava caratê constantemente (pude vê-lo, nas férias que passamos juntos, exercitando-se em quebrar tijolos e pedaços de madeira com a "lâmina" da mão, que era sempre necessário enrijecer). Mas ele temia que, entre os Yanomami, o bom esporte se tornasse luta real e — por que não? — mortal. Recorria então a um golpe infalível: fazia cócegas no adversário. Prática inédita que desmontava os índios que, morrendo de rir, interrompiam a peleja.

Uma preocupação cuidadosa com a dimensão não-agonística do jogo, transformar o jogo num esporte, numa competição. O que não deixa de suscitar uma espécie de nostalgia da sociedade primitiva.

Pode-se falar, creio, de nostalgia. Mas, no caso de Clastres, assim como no de Rousseau, não se trata de um convite a um retorno impossível. Não se pode ler Rousseau como fazia Voltaire que, depois de ler o segundo Discurso, escreveu a Jean-Jacques dizendo que já estava velho demais para voltar a andar de quatro...

Ironia, talvez?

Ironia, certamente e formidável piada, de um grande especialista nesse gênero literário. Mas, também, enorme equívoco. Voltaire não podia entender Rousseau, que afirmava explicitamente que não se pode regredir na História.

Mas, de qualquer forma, em Clastres não há uma nostalgia ingênua.

Não, ao contrário. Trata-se antes de lançar luz sobre o presente de uma maneira que não é linearmente catastrofista. No caso de Rousseau talvez se possa falar em catastrofismo, já que ele pensa que, a partir de um certo momento, a História caminha necessariamente na direção de uma multiplicação da violência: a linguagem perde sua força e cede lugar à violência física. Desse ponto de vista, Rousseau opõe-se frontalmente ao otimismo da Filosofia das Luzes. A antropologia política de Clastres não dá lugar a uma teleologia da história, quer otimista, quer catastrofista. No que não deixa de aproximar-se, pelo menos nesse ponto, de Michel Foucault, que conheceu pessoalmente no Brasil em 1965. Mas jamais festejou o "Retorno do Espiritual em Política", como fez Foucault por ocasião do acesso de Khomeini ao poder no Irã.

O senhor classificaria Clastres como um etnólogo de campo?

Quanto a isso não há a menor dúvida. Seu primeiro livro7 é a primeira evidência; trata-se de etnografia pura. Mesmo quando se encaminha na direção de uma antropologia política que toca os limites da filosofia política, ele sempre o faz a partir de sua extensa experiência de campo.

E o senhor acha que a experiência de campo foi muito transformadora para Clastres em relação à sua pessoa?

Creio que sim. Basta pensar em seu itinerário: iniciou o curso de filosofia em 1954 e deve tê-lo terminado em 1958, quando começou a assistir às aulas de Lévi-Strauss e interessar-se mais pela antropologia. Vejamos as datas [apanha um exemplar de A sociedade contra o Estado e passa em revista as datas e os dados biográficos]: "[...] Durante as aulas de licenciatura começa a interessar-se por estudos etnológicos, seguindo o curso de Lévi-Strauss no Collège de France a partir de 1960".8 Provavelmente assistimos juntos às aulas de Lévi-Strauss no ano letivo de 1962-63. Não me lembro dele nas aulas, nem seria possível lembrar. Recordo que freqüentei o curso ao lado do Fernando Henrique e do Giannotti. Essas aulas eram assistidas por umas cem pessoas, mais ou menos. [Segue lendo] "Em 65 defende sua tese de doutorado 'Vida social de uma tribo nômade - os índios Guayaki do Paraguai'". A tese se transformaria em seu primeiro livro. Note-se que entre o começo do interesse pela antropologia e a redação desse excelente livro medeiam apenas cinco anos. E a história de uma conversão, de uma mudança de hábitos que não são apenas intelectuais, mas que atingem a carne da vida cotidiana na sua totalidade. Provavelmente essa conversão não foi tão difícil, porque aparentemente ele sempre havia sido algo rebelde face às regras que governam nosso cotidiano. Estava de algum modo preparado para uma conversão que não foi apenas do olhar ou da teoria, mas uma transformação de seu próprio modo de viver, na sua mais trivial materialidade. Certa vez falou-me, por exemplo, sobre a dificuldade que tinha no Paraguai, logo de início, em simplesmente dormir. Em noites de frio mais intenso, os índios dormiam em volta da fogueira sem a menor dificuldade, pois giravam espontaneamente o corpo de maneira a aquecê-lo de todos os lados, como um frango no espeto de um grill elétrico. Mas ele acordava constantemente, semi-assado de um lado e gelado do outro. Só aos poucos aprendeu a técnica do que poderíamos chamar de "sono giratório". Como se vê, tornar-se etnógrafo implica, entre outras coisas, drásticas transformações de nossas inconscientes "técnicas corporais". Sem esquecer que Pierre efetivamente aprendeu a "andar na floresta". Depois desse aprendizado (que nos faz lembrar do aprendizado dos "adventícios", que se tornavam "bandeirantes" ao indianizar-se, mudando o modo de pisar, conforme a descrição de Sérgio Buarque de Holanda9), acometido de forte malária, foi capaz de caminhar mais de 300 quilômetros através da floresta, para buscar o necessário atendimento médico no mundo urbano.

Por isso podemos até evocar essa inspiração maussiana em seu trabalho de campo. Ele se aproxima muito mais do refinamento etnográfico maussiano do que do formalismo derivado da obra de Lévi-Strauss.

Certamente. Ele teve uma experiência de campo, de pura etnografia, muito mais extensa do que a do próprio Lévi-Strauss, não?

Ah, sim. Talvez, então, observando isso como reflexo na própria teoria dele, seria possível pensar como o sujeito aparece nessa estrutura. Enfim, o sujeito dotado de vontade, esse ser social primitivo que tem uma vontade, um desejo e um temor, talvez um sujeito que ficou impresso na experiência etnográfica de Clastres.

Eu não havia pensado nesse aspecto, mas me parece que você tem razão. Seguramente Pierre jamais participou do monótono coro dos profetas da "morte do sujeito". De qualquer modo isso confirma a complementaridade entre a conversão teórica e a prática, entre o sujeito reflexivo e o sujeito inconsciente: nada menos refletido do que as técnicas corporais...

Mudando um pouco de foco, é interessante como ele faz da guerra um fator positivo, tal como fica marcado em seus últimos escritos. A guerra é tomada a partir, digamos, de sua contrapartida mais positiva para a sociedade.

Eu precisaria reler esses últimos textos. Mas posso dizer como ele me apresentou a coisa. Falando dos Yanomami, dizia: aí temos uma sociedade composta de várias tribos, dividida no meio pela linha que separa amigos e inimigos, uma sociedade estruturada, enfim, em torno da Guerra. O que me lembro é que, segundo Clastres, o coeficiente de violência, envolvido na guerra, era quase igual a zero. As aldeias eram cercadas por paliçadas altas e as incursões guerreiras consistiam em raras iniciativas de poucos heróis que, durante a noite, lançavam algumas flechas por sobre a paliçada, atingindo eventual ou acidentalmente alguma criança ou algum animal, ferindo o ombro de um ou outro guerreiro que vagueasse pela noite. E, logo em seguida, os atacantes fugiam o mais rápido possível para suas aldeias. A violência eclodia, por assim dizer, fora da Guerra. Ela irrompia nas festas em que uma tribo recebia outra, sua aliada, para uma confraternização; sobretudo quando os convidados eram aliados distantes. Como se o aliado mais distante fosse, mais que o inimigo, o verdadeiro objeto da violência social. Algumas vezes (necessariamente raras), em meio à festa, os convidados eram atacados; os homens massacrados e as mulheres e crianças seqüestradas. A violência era enorme, mas muito pouco freqüente, pois de outro modo o sistema não funcionaria, proibindo qualquer forma de aliança. Ela eclodia, repito, entre aliados distantes, mas sempre aliados, como sempre ocorreu na nossa Esquerda: o principal inimigo não é exatamente a Direita, mas aquele que está à sua esquerda ou à sua direita dentro da própria Esquerda, embora hoje utilizemos pouco as flechas e os tacapes [risos]. Assim, a violência é controlada e reduzida, mas jamais eliminada, como seria o caso numa visão idílica e nostálgica ("idealista") da sociedade primitiva.

Tenho a impressão de que ele se aproximava de uma espécie de arqueologia da Guerra quando a morte interrompeu seu itinerário. Sinceramente baseio-me mais em nossas conversas. Mas se você me perguntar como e onde termina a reflexão de Pierre Clastres sobre a violência e a política, responderei simplesmente: não sei.

Em relação à convivência que vocês tiveram na França, o senhor ressaltou como o lado rebelde francês de Clastres casou com a etnologia. Mas de que maneira, posteriormente, o "lado etnólogo" dele adentrou, digamos, na vida de cidadão francês ocidental?

Digamos que ele retornou mais instrumentado para manter-se subversivo [risos].

Ele tinha efetivamente uma vida de militância política na França?

Já me referi à sua participação em maio de 68. Pierre certamente esteve envolvido politicamente (se não me engano ao lado de gente como Félix Guattari) na oposição à guerra da Argélia. Mas ignoro ligações político-partidárias. Não posso esquecer, entretanto, que ele chegou a colaborar, nos anos 70, com uma enciclopédia anarquista italiana, se não me falha a memória.

Notas:

* Professores Adjuntos do Departamento de Ciências Sociais, da Universidade Federal de São Carlos.

1 Cosac & Naify, 2003

** As duas expressões são equivalentes a "tomar umas e outras"; literalmente, correspondem a "jogar alguma coisa atrás da gravata" e "botar picrato (elemento do vinho) no cerebelo". [N.E.]

2 Texto de 1962, publicado sob o título "Troca e poder: filosofia da chefia indígena", in A sociedade contra o Estado, op.cit., cap. 2.

3 Cf. Henri Bergson, Les Deux sources de la mora/e et de la religion (Paris: PUF, [1932] 1948).

4 Cf. "A sociedade contra o Estado", cap. 11 do livro de mesmo título, op.cit., pp. 232-34.

5 Nicole Loraux, "Note sur l'Un, le Deux et le Multiple", in M. Abensour, VEsprit des lois sauvages: Pierre Clastres ou une nouvelle anthropologie pohtique (Paris: Seuil, 1987), pp. 155-72

6 Cf. José Arthur Giannotti, Trabalho e reflexão (São Paulo: Brasiliense, 1984), p. 160: "Muitas vezes Clastres faz mais metafísica do que teoria, toma a ótica do Ser abstrato, com a simplicidade de quem come chocolate. Se existe metafísica em comer chocolate, para pensá-la convém lembrar que o chocolate precisa ser produzido antes de ser comido, e o Ser, um conteúdo para ser efetivamente pensado".

7 Cf. Crônica dos índios Guayaki. São Paulo: Editora 34, [1972] 1995.

8 P. Clastres, A sociedade contra oEstado, op.cit., p. 273.

9 Cf. Sérgio Buarque de Holanda, Caminhos e fronteiras (São Paulo: Companhia das Letras, [1957] 1994), cap. 1.

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