terça-feira, 14 de julho de 2009

Entrevista com Daniel Lins

O pensamento interdisciplinar
Alheio aos jargões da história da filosofia, Daniel Lins fez da interdisciplinaridade o cerne de sua obra
06/07/2009
Marcia Tiburi
Daniel Lins é professor da Universidade Federal do Ceará e ativo em diversos setores da sociedade cearense. É também pesquisador da subjetividade e da vida contemporânea. Estudou profundamente a história da filosofia no Brasil e na França - onde fez a maior parte de sua formação acadêmica. Formou opiniões próprias, sem aderir ao jargão da história da filosofia. Investiu no rigor da experiência do pensar que não teme a escolha de objetos da vida comum.
As manifestações contemporâneas das teorias que enveredam pela sociologia e pela psicanálise forjam em seus diversos livros um diálogo em que a interdisciplinaridade e a pluralidade são básicas. Pensador para além das fronteiras, manifesta uma coragem da teoria que lança um novo programa para o contexto do debate brasileiro. Um debate em que estão em cena a coragem, a ousadia e a defesa de um ideal de resistência em que o desejo dê asas à escrita, ao diálogo e à reflexão sobre a realidade social e política.
CULT - Muito já se falou sobre a moda da filosofia no Brasil e na França. Existe alguma diferença entre o que acontece lá e o que acontece aqui?
Daniel Lins - Mais que um "efeito" ou uma moda, o boom da filosofia na França ou no Brasil é um fato indiscutível. Há um imenso sucesso editorial: a filosofia se vende bem. Fazer filosofia pode ser um bom negócio. Até aí, nada contra. Os problemas surgem quando os efeitos perversos de tamanho sucesso achatam os conceitos, banalizam as ideias, sacralizam o caráter leigo do pensamento reduzindo-o à mera autoajuda, à reflexão, à discussão ou, pior ainda, à comunicação, isto é, à palavra de ordem.
A filosofia nem reflete nem discute: ela pensa e cria conceitos. Ora, criar conceitos não é da ordem da reflexão, menos ainda da comunicação, pois só se pensa por necessidade.
Discussão, reflexão, comunicação, eis o tripé aniquilador de pensamento-tesão, pensamento amoroso, sempre à margem, que faz mal, dói, transforma um mundo, um país, uma pessoa, ideologias e credos. Pensamento, pois, como blocos de sensações, o oposto da representação, legitimadora maior do capitalismo primário, entre outros.
Eis, pois, a imensa diferença entre o boom da filosofia no Brasil e na França. O sucesso da filosofia, ao emergir na França com a força de um dragão, encontrou um terreno preparado, toda uma experimentação desejante, rebelde; uma tradição filosófica nutrida por uma plêiade de pensadores, múltiplas correntes e escolas. E, finalmente, os séculos 19 e 20 com Nietzsche, Deleuze, Heidegger, Derrida, Foucault, Lévi-Strauss, Pierre Bourdieu, Levinas, e a lista não para.
Não esquecer também que a filosofia faz parte do currículo de todo jovem francês.
A grande diferença entre o boom da filosofia na França e no Brasil pode ser assim resumida: a França é uma república leiga, um país praticamente agnóstico, amante inflamado das revoluções e das artes, da liberdade e do prazer de ler. Nesse contexto, dificilmente o boom filosófico se tornaria uma teologia chique para os pobres. Esse efeito perverso, que começa a ser observado em algumas publicações de certa "pop filosofia" no Brasil, denota a não autonomia de um pensamento implicado em uma história - que é a nossa - marcada pela discussão, pelos arranjos e pela "compreensão", sobremodo, vinculados ao mundo dos negócios, da lógica mercantil e do mito do enriquecimento rápido cujos símbolos proeminentes são a loteria e o futebol: dormir "pobre" e acordar milionário! Nascer na favela e tornar-se bilionário! Na falta de uma tradição filosófica rigorosa, uma nova filosofia babilônica emerge no Brasil: a filosofia lotérica.
CULT - No Brasil, Deleuze tornou-se um discurso pronto que se usa em diversos campos das ciências humanas, uma repetição em que se perdeu de vista o diálogo. Até que ponto o fascínio com uma teoria pode inviabilizar a liberdade de pensar o que essa mesma teoria propunha?
Lins - Eis uma excelente questão. A academia brasileira dificilmente estaria preparada para se deixar, de fato, contagiar ou ser afetada pela "cultura no plural", pela interdisciplinaridade. Todavia, a academia cria também suas linhas de fuga para não sufocar à repetição do mesmo, à redundância careta que tem afastado milhares de jovens de nossas faculdades públicas. Existem, em todo o Brasil, blocos de singularidades no âmbito da academia e, diria mesmo, apesar da academia.
O que domina, contudo, é ainda uma burocracia morna e lutas imaginárias - na sua maioria - ou reais de poder. A academia é muitas vezes uma arena, com combates resultantes de ressentimentos acumulados ao longo dos anos, em que, evidentemente, reinam a atmosfera edipiana, as guerras fratricidas, o desafeto sem limite que se instaura e paralisa a própria instituição.
A transformação é, porém, possível e acontece. Os atores dessa mudança são em sua maioria anônimos, mas há um trabalho de formiga, às vezes contra todos e contra tudo.

Foto: Acervo CPFL

CULT - Como você vê a questão da interdisciplinaridade no Brasil de hoje? Você acredita que nossa academia está preparada para o livre pensar e para novas conexões teóricas e práticas?
Lins - A interdisciplinaridade obedece às exigências do Programa Nacional de Educação de terceiro grau, mas de modo ainda simbólico. Ela é inimiga do improviso, da ausência de rigor etc. É algo muito sofisticado, exige uma formação inserida no mundo contemporâneo, no aprendizado das línguas, na relação mínima com as ciências e, sobremodo, na eliminação da ignorância: a transformação dos preconceitos que fundamentaram e ainda fundamentam a academia brasileira, em muitas de suas vertentes.
Eis o maior problema da interdisciplinaridade. Não a arte dos medíocres; ao contrário, é papo sério, supõe muita pesquisa, 99% de trabalho e 1% de talento. Teríamos, então, de revisitar, desconstruir e repensar a universidade.
CULT - Como você, que conviveu com Deleuze e é estudioso de sua obra, sustenta sua relação com a psicanálise?
Lins - Ao encontrar (que encontro!) Gilles Deleuze, em 1971, encontrei o desencontro, a singularidade, e não a certeza que deixa as pessoas burras, sem poesia nem vontade de viver, e fabrica microfascismos cotidianos. Minha vida tomou outro rumo. Continuei, contudo, minha formação até o final. O adeus à psicanálise aconteceu em 1979. Sem dramas, pois não acreditava mais nas teorias lacanianas. Palavra de ordem? Juiz ou legislador?
A longa formação em psicanálise, filosofia, sociologia e antropologia, com Lévi-Strauss, funcionou, todavia, como excelente intercessora da minha chegada à esquizoanálise, pensada e experimentada por Félix Guattari. A leitura de O anti-Édipo, de Deleuze e Guattari, mudou não apenas minha relação com o discurso psicanalítico, mas mudou de uma vez por todas a própria psicanálise.
Entendo que alguns "leitores" de Deleuze tentem aproximar sua filosofia da psicanálise lacaniana. Tempo perdido: é querer tirar leite de pedra. São dois mundos inconciliáveis. Forçar a barra a esse ponto é quase uma prática sadomasoquista. Deleuze desmontou, recusou, negou o evangelho lacaniano até seus últimos dias. Em O abecedário, considerado seu testamento, ele retoma a questão e enterra de uma vez por todas a psicanálise. Como fugia das críticas e discussões estéreis, ele conversa com a psicanálise elaborando, sob a força de conceitos, a crítica como clínica, como saúde. Nunca se tratou de ressentimento em relação a Lacan, que Deleuze admirava, mas à doutrina lacaniana.
Não foi difícil perceber o universo que separava Deleuze e seu pensamento das certezas de Jacques Lacan. A filosofia deleuziana, ou nietzschiana, não trabalha com pensamentos concluídos, ou saberes dados por antecipação. É uma filosofia do desejo - a que nada falta - e do devir, daquilo que está por vir. Pensar para Deleuze é um esporte, é movimento, é pura invenção.
CULT - Você escreveu filosoficamente sobre Lampião e sobre Sila, tomou temas não comuns como objeto de análise. Você acredita que foi compreendido no contexto brasileiro?
Lins - Eu sou um filósofo, não apenas um professor de filosofia. Aprendi filosofia estudando os gregos, algo deles motivou minha relação com a filosofia. Platão era um pensador próximo da vida, da literatura, da cidade, da política do dia a dia. Nietzsche nunca se enclausurou na abstração filósofa, mas estava presente na história e em movimentos de seu tempo e do tempo por vir. Deleuze é o pensador da multiplicidade, da imagem, da arte, da literatura, do devir, da diferença e da mais fina e difícil filosofia engendrada no século 20.
O que leva esses grandes filósofos a pensar os movimentos de um país, de uma época, as coisas simples da vida, a juventude, o rock, o surfe, os catadores de papel, a bela relação de Deleuze com jovens surfistas, rápida e intensa, no final de sua vida? São pensadores, criadores de conceitos e que não fazem nenhuma diferença entre vida e pensamento. Como imaginar Platão sem o conceito de ideia, ou fora da caverna? Não são burocratas ou pensadores de escritório.
Ao escrever sobre Ayrton Senna, Artaud, Lampião, a ex-cangaceira Sila, metodologicamente fui motivado pela minha formação em filosofia escolástica, mas também pelo desejo de responder ao silêncio do historiador, no caso do cangaço, por meio de um texto inserido na filosofia e na antropologia, sem negligenciar a história e a sociologia. Quanto a ser compreendido, essa questão não me preocupa. É preciso fazer o elogio da ignorância (o mestre ignorante de Jacques Rancière) e da fragilidade da escrita que não aspira à Escritura, à verdade, ao dogma, à camisa de força ou à canonização dos filósofos do Estado, solitários e reconhecidos por aqueles que sabem ler.
CULT - Você acredita que sua produção intelectual consegue dialogar com a geração contemporânea, que não tem a ditadura ou a repressão sexual para combater?
Lins - A ditadura terminou. Não diria, porém, que a repressão sexual não existe no Brasil. Mulheres continuam sendo assassinadas, a maior parte em crimes passionais; o Brasil é um dos campeões de crimes contra travestis; ser homossexual não é uma glamourização para a maioria dos homoafetivos. A última Parada Gay em São Paulo mostrou que o desejo homossexual continua sendo um problema no Brasil.
O que nos resta? Tudo. Temos uma educação agonizante, com exércitos de crianças alfabetizadas, mas iletradas; uma política salarial sem comum medida com as exigências profissionais de um educador; a violência desmesurada; o entretenimento que ocupa de modo quase ditatorial o lugar das culturas; um pensamento único que torna idiota o mais "sabido" dos brasileiros; a violência inserida nas práticas pedófilas; a corrupção como prática política (triste Senado!), a lista é infinita.
O modo de resistir mudou, mas agir continua de uma atualidade extraordinária. Ainda bem que o Brasil não para de resistir: o país reivindica, entra em greve, de norte a sul, leste a oeste, há um desejo de mudança tanto social quanto cultural. Há uma reação viva em todo o país contra a besteira, contra a morte anunciada das culturas, mas tudo se passa em movimentos inseridos em ações micropolíticas não barulhentas, não mediatizadas, mas reais.
CULT - O que você pensa da aproximação entre os intelectuais e a mídia? Você acha que esse diálogo é possível no Brasil?
Lins - Não acredito numa filosofia separada da vida. Todavia, não atribuo importância a um jornalismo da banalidade e do elogio do discurso "fácil". Aqui há, de fato, um problema. A acusação de que pesquisadores e intelectuais não se adaptam ao modelo dos meios de comunicação pode ser vista no mínimo de três maneiras: de onde vem esse poder da mídia de decidir o que o público pode e deve ouvir, ver ou ler? Não há o perigo de cristalizar, de menosprezar o público exilando-o ou confinando-o em sua própria "ignorância"? Sair da linguagem erudita do acadêmico e cair no simplismo midiático não é ainda uma imposição de uma verdade, embora ela esteja atrelada à venda do material produzido?
Acredito no diálogo, mas não sei se os intelectuais, consagrados ou não, estão muito preocupados com a exigência da mídia a seu respeito. Frequento uma "elite intelectual" bastante ampliada, nunca ouvi nenhum desejo de mídia. Diálogo sim, pretensão e imposição nunca! Sinceramente, esse problema diz respeito muito mais à mídia que aos intelectuais. Eu dialogo bem com a mídia, gosto desse ambiente, sinto-me gratificado e, raramente, "censurado".
CULT - Você acredita que a filosofia pode "mudar o mundo"?
Lins - Não tenho nenhuma dúvida. O que deixou o mundo mais feliz não foi apenas a eleição de Obama, mas o fato de que sua filosofia esteja voltada para a paz, para uma multiplicidade mínima, para um humanismo à americana. Limitado, mas com linhas de fuga e resistência inseridas numa micropolítica apoiada indiretamente por uma filosofia vitalista, em que o desejo e a diferença não são blasfêmias, mas possíveis, espaços de respiração. Nunca se trata de "mudar o mundo"; em filosofia o messianismo não tem vez. Trata-se, antes, de dar uma chance mínima à filosofia e aos desejos para que a barbárie não derrube o que nos resta de alegria e vontade positiva de potência.

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