Barravento (1961) é o primeiro longa-metragem de Glauber Rocha, logo, não se pode julgá-lo de maneira a colocá-lo em posição de destaque na cinematografia glauberiana. O filme é, no entanto, já o anúncio da potência artística do cineasta.
De maneira geral, o filme conta a história de uma aldeia de pescadores, descendentes de escravos africanos, que cultivam suas tradições e que tratam com rigor todas as manifestações religiosas de seus antepassados, ainda que para isso tenham que sofrer as conseqüências dessa fé em demasia. A volta de um antigo morador, Firmino Bispo do Santos (Antonio Pitanga), coloca toda a ordem da comunidade em cheque. A ousadia de Firmino em sair da aldeia e o confronto estabelecido com o fora fizeram suscitar indagações que inquietaram o personagem e que, por conseqüência de sua volta, repercutiram em sua aldeia. Firmino é, nesse contexto, aquele que se desprendeu das amarras do seu grupo; é o não-localizado, o que se pôs à margem dos seus, o contestador das fronteiras identitárias.
A crença em Iemanjá - a deusa dos mares, mãe dos orixás e senhora da vaidade - é o que da sustentação as práticas de convívio da aldeia. É sob o regimento da senhora dos mares que se pautam os ritos, festas e todo arcabouço cultural da aldeia. Fé, nesse caso, pressupõe temeridade; um temor a Iemanjá e a fúria das águas, ao Barravento. Os limites da aldeia são os limites do mundo para os moradores, limites que ultrapassam a idéia de respeito à crença e que se fazem cruelmente presentes nas condições de vida - a saber, nesse caso, o analfabetismo, e o conhecimento de outras realidades, como exemplos desse fato.
O posicionamento de Glauber em relação às temáticas pré-supõe um posicionamento antropológico em relação às manifestações culturais daquele povo - o que sob vários aspectos não deixa de ser -, o que, porém, é uma marca no modo de fazer glauberiano é a existência implícita de uma crítica estética e política nos domínios cinematográficos. Barravento é um filme de vanguarda, um filme de potências positivas, que transita com cuidado por entre os ambientes mais belos e perigosos dos modos de crença popular. No âmbito do trágico desenvolvem-se maneiras singulares de percepção, e Glauber soube manter-se aberto para os perigos e subtilidades que envolvem esses movimentos. Jean-Claude Bernardet aponta a generosidade como mais uma característica e diz que:
“O diretor ama profundamente as suas personagens e as engloba num amplo movimento sensual, numa luta que apanha o trabalho, o sexo, a natureza. G. Rocha conseguiu comunicar um furioso amor à vida. Esse amor à vida, é raro no cinema brasileiro (...)”
Um furioso amor à vida é o que está presente em toda cinematografia glauberiana. Barravento transborda esse amor, essa intensidade; uma intensidade de relações construídas a partir da tentativa de compreensão de aspectos muito caros ao movimento da vida. Não me surpreende que quarenta anos depois de seu lançamento, Barravento ainda consiga chamar tanto à atenção em um festival, tão renomado e aclamado pela crítica, como o de Veneza (2003); afinal, Barravento é um filme que se mantêm vivo por processos atualizações que são naturais a obras cujo potencial maior consiste na não obstrução de devires.
Um comentário:
Glauber Fodastico Rocha mudou a minha vida desde que vi Deus e o Diabo na Terra do Sol.
Um beijo.
Ana
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