quarta-feira, 30 de março de 2011

As Nuvens de Saer e as intempéries da longa estrada


Juan José Saer (1937-2005) foi um escritor argentino cuja obra vem sendo, aos poucos, conhecida entre os brasileiros. Seu livro As nuvens é seu último romance e, não por mera coincidência, seus temas indicam algo que parece estar povoado por sombras delirantes e, ao mesmo tempo, por uma lucidez clara e altiva que, em todo caso, exaltam vivências próximas e contrastantes que, embora se repilam, parecem muito intimas e caras às situações do comum.

As nuvens é, sobretudo, um livro sobre a loucura; mas seria pouca e injusta qualquer análise que se detivesse a um único aspecto de um livro cujas possibilidades parecem interessantes e que, não por acaso, parece manter uma conversação constante entre temas afins - porém não menos conflitantes. Assim sendo, a obra estende-se - como o horizonte da planície descrita no próprio livro - e ganha vida em meio às atribulações e delírios dos personagens que demonstram vivamente que “a razão nem sempre exprime o ponto ótimo da humanidade.” A narrativa desdobra-se a partir da saga de um médico cuja missão é buscar, em lugares longínquos, pacientes com problemas mentais para serem internados em um recente, e experimental, hospital psiquiátrico. O ano é 1804 e a Argentina era, ainda, um vice-reinado da Espanha, daí pode-se presumir todas as possíveis dificuldades encontradas. Uma longa viagem, em meio aos percalços da longa estrada e uma caravana composta por loucos (com os mais variados distúrbios), prostitutas, cafetões, fanáticos religiosos e, em meio a isso, um jovem psiquiatra.   A partir daí, o autor vai enredando pequenas outras estórias, singularizando a partir das diferenças existentes, os modos de relacionamento com o tempo e a loucura. As vivências e suas conseqüências, e a forma como se dá o relacionamento entre as violências e delicadezas de ambos os perigos: razão e loucura. Afinal, ambas encarnam em si variações suficientes para que sejam assim observadas. Em todo caso, loucura e razão se repelem por medo de uma contaminação mutua o que, invariavelmente, acaba por aproximá-las.
    
A bela criação a partir (e porque não, com?) da loucura, no entanto, não é menos brilhante que o uso que o autor faz da memória. Há no personagem do Dr. Real uma aliança muito particular com o tempo; um tempo rememorado, um passado que está, que é e que tenta reconciliação a partir de múltiplos vividos.  Assim, pois, podemos concluir, com Bergson, que essa “conservação e acumulação do passado no presente” se confunde com a memória, que é – ao menos por direito, e talvez por fato – duração. O tempo, como não poderia deixar de ser, é tratado em consonância com vividos, mas também confunde-se em momentos muito oportunos da narrativa, onde o autor infere considerações sobre o que se passa na própria narrativa, há uma interferência outra que advêm do próprio autor.  Dessa maneira,

“O passado e o presente não são dois momentos sucessivos no tempo, mais dois elementos que coexistem, presente que não pára de passar, o passado que não pára de ser, mas pelo qual todos os presentes passam. O passado como condição de passagem dos presentes.” (PELBART, Peter Pal, p.37)


       Em suma, o que fica é a imagem de um romance cuja escrita não se propõe a grandes rupturas, um romance, por assim dizer, tímido. Não a timidez dos que se julgam inferior, mas a sábia timidez de quem tem a consciência que não é por grandes alardes, inovações forçosas ou tentativas desajeitadas, que se produz uma bela obra de consistência literária. 

BIBLIOGRAFIA:


DELEUZE, Gilles. Bergsonismo. Tr. Luiz Orlandi. São Paulo: Ed. 34, 1999.
PELBART, Peter Pál. O tempo não-reconciliado. Ed.Perspectiva, 1998.

Um comentário:

Gisèle Miranda disse...

"A longa estrada", o tempo longo demais. Bacana!
abraço