segunda-feira, 28 de abril de 2008

A pintura inflama a escrita: entrevista com Gilles Deleuze



– Antes de o texto ter sido produzido que forma assumia sua admiração por Bacon?

Gilles Deleuze – Na maior parte das pessoas, Bacon provoca um choque. Ele próprio diz que seu trabalho consiste em produzir imagens, e se trata de imagens-choque. O sentido desse choque não remete a algo de “sensacional” (o que é representado), mas depende da sensação, isto é, de linhas e de cores. Confrontamo-nos com a presença intensa de figuras, às vezes solitárias, às vezes com vários corpos, suspensos horizontalmente, em uma eternidade de cores. Perguntamo-nos, então, como esse mistério é possível. Vemo-nos a imaginar a imaginar o lugar de um pintor desses na
pintura contemporânea, e mais geralmente na história da arte (por exemplo, a arte egípcia).Parece-me que a pintura atual ofereceria três grandes direções, que seria preciso definir não formalmente, mas material e geneticamente: a abstração, o expressionismo, e aquilo que Lyotard chama de Figural, que é diferente do figurativo, exatamente uma produção de Figuras. Bacon vai mais longe nessa última direção.

– Em um certo momento, você estabelece um vínculo entre os personagens de Bacon e os de Kafka: escrever sobre Bacon depois de ter escrito sobre Sacher-Masoch, Proust, depois Kafka, há também aí um vínculo?

G. D. – O vínculo é múltiplo. Trata-se de autores de Figuras. Seria preciso distinguir vários níveis. Inicialmente, eles nos apresentam sofrimentos insondáveis, angústias profundas. Depois, tomamos consciência de uma espécie de “maneirismo”, no sentido artístico da palavra, à la Miguel Ângelo,pleno de força e de humor. E nos apercebemos que, longe de ser uma sobrecarga de complicação,trata-se do fato de uma pura simplicidade. Aquilo que acreditávamos ser tortura ou contorsão remete a posturas muito naturais. Bacon parece produzir personagens torturados, diz-se a mesma coisa de Kafka, poderíamos acrescentar Beckett, mais basta olhar alguém que é obrigado a ficar sentado durante um longo tempo, por exemplo, uma criança na escola, para ver que seu corpo assume apenas as posturas mais “econômicas” em função de todas as forças que se exercem sobre ele. Kafka tem a obsessão de um teto que pesa sobre a cabeça de alguém: ou então o queixo se enfia horrivelmente no peito, ou ainda a extremidade do crânio vai furar o teto... Em suma, há duas coisas muito diferentes: a violência das situações, que é figurativa, mas também a incrível violência das posturas, que é “figural” e muito mais difícil de apreender.

– Como se escreve um livro sobre a pintura, apelando-se a coisas ou a seres da literatura, aqui Kafka, Proust, Beckett?

G. D. – Aquilo que se chama em literatura de estilo existe em pintura: trata-se de um conjunto de linhas e de cores. E se reconhece um escritor por sua maneira de envolver, de desenrolar ou de quebrar uma linha em “sua” frase. O segredo da grande literatura está em ir em direção a uma sobriedade cada vez maior. Para citar um autor que eu adoro, uma frase de Kerouac termina por uma linha de desenho japonês, ela mal se apóia sobre o papel. Um poema de Ginsberg é como uma linha expressionista quebrada. Pode-se, assim, imaginar um mundo comum ou comparável entre pintores e escritores. É essa precisamente a jogada da caligrafia.

– Escrever sobre a pintura lhe proporcionou um prazer particular?

G. D. – Deu-me medo, parecia-me verdadeiramente difícil. Há dois perigos: ou se descreve o quadro, e nesse momento um quadro real não é necessário (com seu gênio, Robbe-Grillet e Claude Simon conseguiram descrever quadros que não precisavam existir), ou então se cai na indeterminação, a efusão sentimental da metafísica aplicada. O problema próprio da pintura está nas linhas e nas cores. É difícil extrair conceitos científicos que não sejam do tipo matemático ou físico, que não sejam tampouco da literatura projetada sobre a pintura, mas que sejam como que talhados pela e na pintura.

– Não seria isso também uma maneira de subverter o vocabulário crítico, de reanimá-lo?
G. D. – A escrita tem seu próprio calor, mas é ao pensar na pintura que apreendemos melhor a
linha e a cor de uma frase, como se o quadro comunicasse algo às frases... Raramente fiz um livro com tal prazer. Quando se trata de um colorista como Bacon, a confrontação com a cor é
transtornante.

– Quando você fala do clichê ambiente que preexiste à tela, você não aborda também o problema do escritor?

G. D. – A tela não é uma superfície branca. Ela já está toda carregada de clichês, ainda que não os vejamos. O trabalho do pintor consiste em destruí-los: o pintor deve passar por um momento em que ele não vê mais nada, por um desmoronamento das coordenadas visuais. É por isso que eu digo que a pintura incorpora uma catástrofe, ela é mesmo a matriz do quadro. Isso já é evidente em Cézanne, Van Gogh. No caso das outras artes, a luta contra os clichês é muito importante, mas ela permanece exterior à obra, ainda que ela seja interior ao autor. Exceto em casos como o de Artaud, no qual o desmoronamento das coordenadas lingüísticas ordinárias pertence à obra. Em pintura, ao contrário, trata-se de uma regra: o quadro provém de uma catástrofe ótica, que permanece presente sobre o próprio quadro.

– Você escreveu com as pinturas à sua frente?

G. D. – Escrevi com as reproduções à minha frente, e aí tomei de Bacon o seu método: quando ele pensa em um quadro, ele não vai vê-lo, ele tem fotos coloridas dele ou mesmo fotos em preto em branco. Volto para ver os quadros apenas no meio do trabalho de escrita ou depois.

– Você tem, às vezes, necessidade de se desligar da obra, de esquecê-la?

G. D. – Não tenho necessidade de esquecê-la. Havia um momento em que a reprodução não servia mais para nada porque ela já tinha me remetido a uma outra reprodução. Um exemplo: eu olho os trípticos e tenho o sentimento de que há uma espécie de lei interior. Isso me força a saltar de uma reprodução a outra para compará-las. Segundo momento: tenho a impressão de que se
essa lei existe, ela deve estar ali de uma maneira oculta, mesmo nos quadros simples. Era uma
idéia que estava no ar e que me veio entre os trípticos. Terceiro momento, ao folhear as reproduções dos quadros simples, caio num quadro intitulado O Homem e a Criança, no qual a construção em tríptico me parece evidente. Ele representa uma jovem estranha, com pés enormes, e que tem um ar sério, os braços cruzados, e que olha para um homem, como faz Bacon, sentado sobre um banquinho regulável, do qual não se sabe se ele está descendo ou subindo. É evidente que esse quadro, por sua organização, é um tríptico envolvido em vez de ser um tríptico desenvolvido. Assim, as reproduções me remetiam umas às outras, mas é geralmente entre duas delas que se tem uma idéia que remete a gente a uma terceira reprodução…

– De que maneira as entrevistas de David Sylvester com Bacon foram uma base de trabalho,diferente dos quadros?

G. D. – É uma base necessária. Primeiramente, as entrevistas são bonitas, e Bacon diz muitas
coisas. Em geral, quando os artistas falam daquilo que fazem, eles têm uma modéstia
extraordinária, uma severidade com eles próprios, e uma grande força. Eles são os primeiros a sugerir muito fortemente a natureza dos conceitos e dos afectos que se despreendem de sua obra.Os textos de um pintor agem, portanto, de uma maneira inteiramente diferente da de seus quadros. Quando se lêem as entrevistas, tem-se sempre a vontade de fazer perguntas suplementares, e como a gente sabe que não se poderá fazê-las, é preciso se virar inteiramente sozinho.

– Você não encontrou Bacon?

G. D. – Sim, mais tarde, depois desse livro. Sente-se nele potência e violência, mas também um
charme muito grande. Se ele fica sentado durante uma hora, ele se torce em todos os sentidos,
dir-se-ia que é, verdadeiramente, um Bacon. Mas sua postura é sempre simples, por causa de uma sensação que ele aprova, talvez. Bacon distingue a violência do espetáculo, que não lhe interessa,e a violência da sensação como objeto da pintura. Ele diz: “Começo por pintar o horror, as touradas ou as crucificações, mas isso é ainda demasiadamente dramático. O que conta é pintar o grito”. O horror é ainda demasiadamente figurativo, e ao passar do horror ao grito, obtém-se um ganho formidável na sobriedade, toda a facilidade da figuração cai. Os Bacon mais belos são personagens que dormem, ou um homem visto de costas, barbeando-se.

– Seu livro tem, de qualquer maneira, a aspiração, por detrás de sua dimensão de homenagem, de fazer com que se vejam melhor as pinturas de Bacon?

G. D. – Se ele fosse bem sucedido, teria necessariamente esse efeito. Mas acredito que ele tem uma aspiração mais alta, com a qual todo mundo sonha: aproximar-se de algo que seja como que um fundo comum das palavras, das linhas e das cores, e mesmo dos sons. Escrever sobre pintura,escrever sobre música implica sempre essa aspiração.

– O segundo volume do livro (as reproduções das pinturas), que não segue a ordem cronológica da obra de Bacon, deveria sê-lo da história de sua ligação com Bacon, isto é, reconstituir uma ordem de visão?

D. G. – Com efeito, na margem do texto, há números que remetem à reprodução dos quadros. Essa ordem de surgimento é um pouco perturbada por razões técnicas (o lugar dos trípticos). Mas,em sua sucessão, ele não remete a uma cronologia de Bacon. Ele vai, antes, logicamente, de aspectos relativamente simples a aspectos relativamente complexos. Um mesmo quadro pode,pois, ressurgir quando se descobre nele um aspecto mais complexo.Quanto à cronologia, Sylvester distingue nas entrevistas três períodos de Bacon e os define muito bem. Mas, após um certo tempo, Bacon se lança em um novo período: a potência que tem um pintor de se renovar. Ao que eu saiba, não há mais que três quadros: um jato d’água, um jato de erva e um jato de areia. É inteiramente novo, toda “figura” desapareceu. Quando encontrei Bacon, ele dizia que sonhava em pintar uma onda, mas que ele não ousava acreditar no sucesso de um tal empreendimento. Trata-se de uma grande lição de pintura, um grande pintor que chega a dizer: “Seria muito bom se eu pudesse apreender uma pequena onda...”. É muito proustiano; ou então Cézanne: “Ah, se eu pudesse chegar a pintar uma pequena maçã!”

– Você descreve a obra, você tenta definir seus sistemas, mas em nenhum momento você diz “eu”.

G. D. – A emoção não diz “eu”. Você mesmo o diz, a gente está fora de si. A emoção não é da ordem do mim, mas do acontecimento. É muito difícil apreender um acontecimento, mas não acredito que essa apreensão implique a primeira pessoa. Seria preciso, antes, recorrer, como Maurice Blanchot, à terceira pessoa, quando ele diz que há mais intensidade na proposição “ele sofre” que em “eu sofro”.

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