terça-feira, 20 de julho de 2010

Sobre o esquecimento da vida-obra de Glauber Rocha.


São raríssimos os casos em que se percebe um evidente entrelaçamento entre o que se produz, enquanto atividade – seja ela de que caráter for -, e a vida enquanto forma de pensamento e posicionamento ideológico. Atentar para essa incômoda rivalidade entre o que se pensa e o que se faz de fato (e com os fatos), é algo a que devemos nos ater.
                A vida é algo que acontece e é constantemente vitimada por sucessivos movimentos que contrariam expectativas e lógicas. Situar-se em meio a possibilidades para não afugentar devires é o que talvez, aliado a uma singular e expansiva sensibilidade, faça com que possamos de alguma maneira, chegar a isso que, tão logo alcançada, é o ápice do pensamento; a criação.
                Expor fatos, violentar a edificante, e forçosa, concepção eruditizada da vida, entrar em permanente contato com a realidade e transar, com vontade única, com as possibilidades da vida, sem perde-se nos descaminhos dos delírios incompatíveis e das paixões negativas; isso, pra mim, é o legado e grande marca de Glauber Rocha. Glauber é co-extensivo, uma máquina de conexões múltiplas. Sua potência estética é um aglomerado, sempre diverso e extensivo, de sensações que remetem a fatos outros, que não somente questões estéticas e políticas. A grande questão para Glauber era a vida, seus caminhos e descaminhos, sua inexorabilidade. Ainda que, para muitos, determinadas épocas tenham exercido uma forma inibidora de potências, em Glauber isso se torna avesso, como avesso mesmo era ele. Glauber dizia que “o condicionamento econômico e político nos levou ao raquitismo filosófico e à impotência, que, às vezes inconsciente, às vezes não, geram no primeiro caso, a esterilidade e no segundo a histeria.” E, como podem perceber os mais atentos, estava certo. O delírio glauberniano, no entanto, era por vezes confundido com histeria; pobres os que cometiam tamanho equivoco. Enquanto eles marchavam rumo às trincheiras da repetição vulgar, da submissão política e artística, Glauber dançava ao som do novo, da criação. Sem qualquer espécie de raquitismo sectário, o que se via era um homem em constante ereção intelectual, voltado às questões mais nobres do espírito, flamejante em sua práxis!  Sua condição política, artística, ética, etc. se confundia com sua existência, era a sua existência.
                Gilles Deleuze e Félix Guattari pensaram, a partir de Artaud, um tal Corpo sem Órgãos, que seria, antes, um conjunto de práticas. Práticas que estão para além de estratificações que condicionam e limitam o movimento da vida. Glauber produziu para si um CsO*, o fez flutuar em meio ao peso da miséria moral que lhe cercava. Em Glauber a vida transborda e faz nutrir o múltiplo, o que, a outros olhos, é comum, em Glauber é possibilidade, centelha de criação. Glauber via com todo o corpo, era uma vítima e um algoz da vida, das intensidades que lhe atravessava, afinal “um CsO é feito de tal maneira que ele só pode ser ocupado, povoado por intensidades”.  
                A grande obra de Glauber Rocha é sua vida. A singularidade de uma existência marcada pela inquietação.

Um comentário:

Tecituras disse...

Escrita maravilhosa! um pedaço de Glauber sem tietagens, na ferida, na alma. Recordei de uma entreista do Darcy Ribeiro que gosto muito(hj mais resgatado, mas no limbo no Br, pelo vículo com Leonel Brizola - Mas, não na América Latina!)

Darcy relembrava uma festa de inauguração da UNB, que ele foi com Glaber. Era festa para doutos, não estudantes. Enquanto alguns acendiam seus charutos, cigarros, cahimbos - Glauber acendeu um baseado "enorme" e fumou até o fim. E até o fim da festa ele ficou ao lado de Darcy, sem que ninguém ousasse falar nada, pelos menos abertamente.
Glauber tinha lá sei dissenso político. Como Dali teve, Paschoal Carlos Magno, enfim.
beijos
Gisèle