domingo, 19 de setembro de 2010

Breves considerações acerca do fazer literário de Roberto Bolaño

Escritor, literato, agenciador... eis aí boas designações para referenciar a singular figura de Roberto Bolaño. A veste literária não é senão como uma segunda pele para escritores como Bolaño – embora tal veste não seja fixa e por isso seja dada a frouxidões, larguras, buracos, e, sobretudo, remendos. Poucos são os autores que se valem da alcunha literária com tamanha desmesura e competência. No entanto, Bolaño não é inédito e a isso, principalmente, deve-se a sua potência. 

Um escritor é antes (antes mesmo de sua escrita) um agenciador. Alguém cuja sensibilidade para com as vivências está sempre – ou ao menos em nível mais elevado - em primeiro plano, disposta e aberta às possibilidades e aos movimentos que essas vivências podem engendrar. De maneira geral, o bom escritor é aquele que, para além das fabulas e representações, está envolvido com o que acontece em nível mais radical, ou seja, com o fora. Essa relação com os fatos, com o fora em sentido concreto e imanente, não é apenas o que da sentido a obra, mas, sobretudo, é aquilo que a faz participar dos movimentos e da engrenagem das vivências de acordo com os alcances possíveis da obra; fazer emergir, dinamitar, cartografar, mas também obstruir velocidades incendiarias, são modos de ação da literatura que se presta à vida. O romance Estrela Distante, de Roberto Bolaño, é um exemplo de como os afetos literários inundam os planos das vivências – esses gramados de onde surgem as multiplicidades. Estrela Distante deve ser lido não apenas como uma narrativa cujo encadeamento nos leva a questionamentos de ordem moral, nem tão somente deve-se pensar meramente na representação e importância de um dado momento histórico – muito embora essa seja uma questão. Para além dessas questões que são evidentes e prontamente percebidas deve-se procurar por entre a sinuosidade e descaminhos de uma literatura aberta, que da margem ao por vir. Através de seus personagens, fictícios ou não, nos deparamos,descobrimos autores de incríveis virtudes narrativas, poéticas, literárias. Assim, com singular destreza, nos são apresentados nomes como Enrique Lihn, Nicanor Parra, Michel Leiris, Jorge Teillier, Jorge Cáceres, Braulio Arenas, para citar alguns. Assim, pois, o livro torna-se uma máquina, no caso de Estrela Distante uma máquina-literária autentica por referir-se à própria literatura e suas relações com o fora, com a vida e seus fluxos. A questão é, sobretudo, como a literatura funciona para mim? Quais os modos de funcionamento desses ou daquele livro? Como disseram Gilles Deleuze e Félix Guattari: 

“Um livro existe apenas pelo fora e no fora. Assim, sendo o próprio livro uma pequena máquina, que relação, por sua vez mensurável, esta máquina literária entretém com uma máquina de guerra, uma máquina de amor, uma máquina revolucionária, etc. ”

Ora, a relação que a literatura pode vir a estabelecer com outras máquinas é o que a torna possível dentro de um campo teórico-prático que a mantêm viva e pulsante dada às suas configurações extra-ordinárias. Talvez Bolaño seja mesmo um pessimista, como afirmam alguns, afinal não a muito daquele delírio positivo em seus personagens, estão chafurdados, vitimados pela fracasso, sendo ele mesmo também, enquanto narrador, um descontente. Assim é quando diz:

“Esta é a minha última transmissão a partir do planeta dos monstros. Não mergulharei nunca mais no mar de merda da literatura. De agora em diante, escreverei meus poemas com humildade e trabalharei para não morrer de fome e não tentarei publicar nada.”

Bolaño na verdade é um pessimista frustrado, porque sabe – e sabe por que experimentou -, que a literatura e a vida são indissociáveis e uma vez experimentadas ao ardor das multiplicidades tornam-se inseparáveis e imprescindíveis. 

O que fica é um escritor que deixa de lado significações baratas e vaidades estilísticas para fazer da escrita um ato literário. Um escritor de farrapos; farrapos poético-narrativos oriundos da alta estirpe literária.

Um comentário:

Tecituras disse...

"fazer da escrita um ato literário" - tb faz da escrita um ato libertário, né?
Não conhecia Roberto Bolaño.... que bom saber um pouco.
valeu!
beijos
Gisèle